Por diversas vezes, Agostinho da Silva se referiu ao pernicioso papel da escola na "castração" espiritual das crianças. Defendia que a escola deveria ajudar cada um a tornar-se naquilo que quisesse/pudesse ser. Chegava a falar com naturalidade de uma "inversão dos papeis", com os meninos a definir os assuntos que em cada momento os professores deveriam tratar, colocando as questões que verdadeiramente lhes interessasse ver respondidas.
Parece haver uma absoluta e inconciliável contradição entre esta visão (porventura impossível de realizar completamente na prática) e a realidade do Ensino Básico/Secundário em Portugal, com o Ministério da Educação detendo no essencial o monopólio da definição de um "projecto educativo", diríamos, totalitário.
Por outro lado, a par de um processo de "domesticação" dos professores que a prazo tenderá a uniformizar ainda mais (nivelando-o "por baixo", como costuma ser o resultado de tais processos homogeneizadores conduzidos pelo Estado... com as melhores intenções, bem entendido!), assistimos a uma ofensiva sem precedentes sobre numerosas instituições de ensino particular e cooperativo, traduzida pela acelerada concentração do "mercado" pelo grupo GPS, alegadamente com ligações a conhecidos políticos, parlamentares e governantes do Partido Socialista e do Partido Social Democrata, como tem vindo a ser noticiado pela imprensa escrita e online, nomeadamente JN(1), DoPortugalProfundo(2), Diário XXI(3). O grupo estará a beneficiar de um extraordinário conjunto de ajudas públicas, directas ou indirectas, conforme tem denunciado o Sindicato de Professores da Região Centro (4) relativamente ao caso do Colégio da Covilhã.
Neste contexto, parece legítimo propor que a causa da Nova Águia(5) - se deveras segue o voo da primeira Águia - seja a causa da Liberdade Educativa. A Nova Águia deve lançar o seu alto e incisivo olhar crítico sobre este processo em curso que, aparentemente, pode vir a degradar ainda mais a já muito limitada diversidade da oferta educativa em Portugal. E, se for o caso, porque não tomar posição?
Em boa verdade, este alerta não é totalmente desinteressado na medida em que há vários anos temos vindo a preparar com outros professores um projecto educativo alternativo a aplicar numa nova instituição de ensino particular a criar de raiz. Porém, as notícias que têm vindo a público permitem adivinhar que, com a concorrência protegida por "tubarões" da classe política, dificilmente o projecto pode vir a ser aprovado - aliás a sua discussão com os serviços do Ministério arrasta-se há meses na DREN, infelizmente famosa por um outro caso de interferência da política sobre os serviços de tutela da educação.
É do domínio público que o referido grupo GPS tem intenção de se instalar na mesma região do país a curto prazo, com 10 milhões de euros e tudo! Por isso, ocorre-nos igualmente questionar se tantos milhões são de facto "capitais próprios" ou, como têm alertado os sindicatos, são em boa parte resultado de ajudas públicas, ou seja dinheiro "de todos nós" a utilizar para que alguns, com ligações ao poder, esmaguem iniciativas igualmente legítimas da sociedade civil. E com tudo isto, depois da água, da saúde e do ensino superior transformados em negócio, receamos ter chegado agora a vez do ensino básico e secundário, com claro prejuízo para as ideias de Agostinho da Silva a respeito da "Educação dos meninos".
Qualquer cidadão honesto e justo, mesmo tratando-se de um reconhecido especialista em literatura portuguesa, a quem pedissem para indicar um conjunto de "escritores obrigatórios" para o "ensino oficial de português" ficaria de nervos em franja com a imensa responsabilidade de uma tal selecção. Instado a justificar-se, poderia simplesmente invocar uma "objecção de consciência". E se a questão fosse colocada a uma comissão e não a um indivíduo? Tornava-se legítima a ostracização deste ou daquele autor, por ter a assinar o decreto mais ou menos autoridades? Ainda que, por hipótese, o decreto pudesse apoiar-se num referendo a todo o povo português, expressamente chamado a pronunciar-se sobre os escritores, poetas e filósofos mais representativos/significativos, teria a assembleia do povo inteiro legitimidade ética e artística para impor a eliminação deste pensador, a exclusão daquele poeta do universo espiritual dos meninos? Mesmo tratando-se de um autor profundamente conhecido e divulgado por certo professor, de alguém que recolheu como ninguém o imaginário popular da região daquela escola?
Precisará o Ensino Oficial desta delimitação do campo de estudo para poder avaliar os conhecimentos dos alunos em... exames nacionais? Chegado aqui, Agostinho da Silva não deixaria porventura se interrogar "E nós, os portugueses, precisamos assim tanto de exames nacionais?"...
Parece, então, que o raciocínio seguido pelos nossos burocratas do ensino tem sido este:
- Temos de avaliar uniformemente (para ser justos?) todos os candidatos ao ensino superior.
- Então temos de dar o mesmo programa em todo o país.
- Então temos de delimitar esse programa.
- Então, em algumas disciplinas como o Português ou a Filosofia, temos de "dar" um conjunto limitado de autores.
- Então temos de incluir alguns e excluir outros.
- Então temos de observar critérios de valia "internacional e cientificamente reconhecidos".
- Então... (e por aí fora)
Deixemos, pois, vaguear livremente a nossa mente sedenta de respostas um pouco mais amplas. O que eu começo a suspeitar, especialmente depois de ter encontrado dois casais de navegadores noruegueses com filhitos pequenos em idade escolar a quem ensinavam pelo livro aberto do mundo que percorriam de mar em mar e de porto em porto (e por uns livros que levavam a bordo), é que será possível encontrar uma outra forma de assegurar o desenvolvimento da mente, do corpo, da sensibilidade, da capacidade de expressão dos jovens, sem passar pela tortura dos "programas obrigatórios" e dos "exames nacionais únicos". Que um mastodonte como o nosso ministério da educação tenha dificuldade em conviver com a diversidade, com o pluralismo e a especificidade, não me custa admitir. Mas... a complexidade da sociedade, o pluralismo das ideias, dos projectos de vida e dos quadros de valores e referências (por exemplo religiosas e filosóficas) não mereceriam do Estado uma resposta diferenciada / diferenciável ou, ao menos, de tolerância e de respeito pela nossa Santa Liberdade, hoje reduzida à amarga clausura dum verso no hino da «Maria da Fonte»?
Em tantos campos se conquistou com tanta luta o direito à diferença e à pluralidade dos sentidos contra a tentação dos movimentos unitários, partidos únicos, sindicatos únicos, canais únicos (rádio, TV), concessionários únicos de telecomunicações, contra os monopólios enfim... e não se há-de reconhecer, no terreno singularmente determinante de uma sociedade como é o da Educação, a virtude redentora da Liberdade?
Quem nos garante que uma irmandade secreta não se infiltrou ou infiltrará secretamente no Ministério da Educação para a verdadeira corrupção da juventude (não a do Sócrates de Atenas e da ironia, mas a dos de hoje) deixando toda a sociedade à mercê da sua doutrina subliminar perpassando os manuais escolares? Por exemplo uma irmandade Coca-Cola ou McDonald's? Quem folhear os actuais manuais portugueses pode legitimamente pôr-se todas estas questões...
Perante isto, não vemos outra defesa ou saída que não a proposta por Agostinho da Silva - e para isto nos servem as reflexões (aparentemente ociosas) dos visionários e dos filósofos. Que os meninos cheguem à escola e coloquem ao professor as suas perguntas. "Hoje queremos aprender isto; falar daquilo; fazer aqueloutro ou absolutamente nada; vadiar; passear!". Ou então, que ao menos se lhes ofereçam escolas suficientemente diferenciadas para que estes, com os pais / encarregados de educação, possam escolher a que lhes interessa frequentar, em função dos seus padrões de qualidade, da orientação religiosa, filosófica ou até estética; em função (porque não?) dos autores seguidos.
E chegamos a uma questão que, na linha de desconsideração dos Direitos da Família por parte do Estado, tem vindo a ser levantada: «A "castração" espiritual das crianças será reduzida ou, pelo contrário, fortalecida, se a liberdade educativa for a liberdade dos pais/"responsáveis" de escolher o "projecto educativo"?»
Existe uma certa ideia de que o Estado sabe e quer o que é melhor para nós todos, logo também para as crianças. Platão propunha na sua República que os filhos, gerados numa sociedade deliberadamente promíscua, tivessem uma educação pública fora da tutela do pai (incógnito) ou da mãe (podemos até, com propriedade, chamar "platónica" a esta ideia). Mesmo platónica, a ideia reaparece-nos hoje sob diversas formas. Já assistimos ao empolamento de situações de disfunção familiar para tomar violentamente as crianças à sua família natural. Há casos verdadeiramente Kafkianos não tratados na imprensa, mais interessada em evidenciar as situações de disfuncionalidade familiar - infelizmente reais mas longe de constituir a regra.
Não podemos aceitar acriticamente um dos postulados-base do sistema de Educação/Doutrinação oficial - esta noção de que as "famílias" seriam um espaço de "castração espiritual" das crianças, contra as quais o Estado se ergue como o "grande educador". Basta pensar no papel, em concreto, do Estado Português no caso «Casa Pia» para encarar com sérias reservas a sua idoneidade na protecção de menores, quanto mais na sua Instrução/Construção. Aquilo a que se tem assistido em Portugal, não se resume ao falhanço do Estado na protecção dos menores à sua guarda mas vai ao ponto da manifesta incapacidade para prevenir, combater e - de 2004 até hoje!!! - punir o alegado envolvimento directo de altas figuras do Estado e da sociedade naquele escândalo.
Os pais, a família, têm para com a criança o "olhar amoroso" que o Estado não lança sequer sobre os contribuintes que o alimentam, quanto mais sobre as crianças e jovens que o "oneram". Pode-se alegar que nem todos os pais olham assim para/pelos seus filhos. Mas é esta a regra, apesar das excepções.
E por isso, entre a "castração real" da educação obrigatória ordenada pelo Estado, e a "castração virtual", hipótese assente numa visão pessimista da família, escolhemos claramente a "liberdade educativa", determinada pelos pais e progressivamente participada pelos próprios estudantes, contra a "ditadura do pensamento único" via educação centralmente programada. E não carecemos de fundamentar esta posição em princípios abstractos ou em valores do foro e consciência pessoal, mas tão só na realidade confrangedora dos números do abandono escolar no Portugal de hoje. Embora outras causas intervenham aqui (dentre as quais a pura necessidade), como ignorar que, por ora, a única liberdade real concedida pelo sistema é... a de o abandonar? Para muitos, o desinteresse pelo desinteressante não encontra outro corolário lógico que não seja o de abandonar um sistema sem alternativas.
Para concluir, fiquemos com uma simples quadra de Zeca Afonso:
"Ainda que seja um ladrão,
aquele que tenha Mãe
tem lá no meio da luta
ternos afagos de alguém"
Isto que o Zeca disse da Mãe, não o dirá hoje ninguém... do actual Estado Português.
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notas:
1. http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Interior.aspx?content_id=923948
2. http://doportugalprofundo.blogspot.com/2008/06/gps-educao-e-escola-pblica.html
3. http://www.diarioxxi.com/?lop=artigo&op=d645920e395fedad7bbbed0eca3fe2e0&id=eb60df0b3ed1230d4d205e0d190cdd86
4. In DN de 14.06.08, pág.25, pelo correspondente em Viseu, por Amadeu Araújo, resenha de partes relevantes onde se apontava a estratégia expansionista e a mão do PS no projecto: «GPS, grupo empresarial que pertence a um antigo deputado socialista», «No distrito de Castelo Branco o grupo já detem o Instituto Vaz Serra [...] Em Viseu o grupo adquiriu recentemente a Escola Profissional Mariana Seixas», «O GPS contratou ainda como consultor outro deputado socialista, o vice-presidente do grupo parlamentar do PS, José Junqueiro.» «A Câmara (da Covilhã) investiu 2,5 milhões de euros no terreno e na isenção de taxas.» «(sub-título)Sindicato dos Professores da Região Centro contesta o investimento público de 2,5 milhões»
5. http://novaaguia.blogspot.com/2008/07/pela-liberdade-educativa.html
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