quarta-feira, maio 30, 2007

desobediência civil - 3ª parte


de Henry Thoreau – 1849

tradução de Luís Botelho Ribeiro

[1] A noite na prisão foi bastante diferente e interessante. Os presos conversavam em mangas de camisa apreciando o ar da noite no momento em que eu entrava. O guarda prisional disse-lhe “rapazes, vamos, está na hora de fechar” e assim dispersaram. Ouvi os seus passos dirigindo-se para as celas vazias. O meu companheiro de cela foi-me apresentado pelo guarda como um “parceiro de primeira e um tipo esperto”. Quando a porta se fechou, ele indicou-me onde pendurar o meu chapéu e o modo como as coisas ali funcionavam. O quarto era lavado mensalmente e o nosso, ao menos, era o mais limpo, o mais simples de mobiliário e provavelmente o mais puro da cidade. Ele quis, naturalmente, saber de onde eu vinha e o que ali me trazia. Depois de lhe contar, foi a minha vez de lhe perguntar como tinha ali chegado, presumindo, é claro, que se tratava também de um homem honesto. E pela forma como vai o mundo, acredito que o fosse. Disse ele “Eles acusam-me de ter incendiado um celeiro, coisa que eu não fiz”. Tanto quanto pude descobrir, ele ter-se-ia provavelmente deixado adormecer embriagado num celeiro e fumado o seu cachimbo – e assim ardeu o celeiro. Ele era tido por esperto; esperara três meses pelo juramento e ainda haveria de aguardar mais algum. Estava, contudo, bastante domesticado e conformado, uma vez que tinha mesa de graça e considerava-se bem tratado.

[2] Ele ocupava uma janela e eu outra. Percebi que se alguém ali fiasse muito tempo a sua principal ocupação seria olhar através da janela. Em pouco tempo já eu tinha lido tudo o que havia para ler, examinado os pontos por onde antigos presos se tinham evadido, onde grades haviam sido serradas e ouvido contar a história dos antigos presos daquela cela. Descobri que até aquele lugar tinha uma história e guardava segredos que nunca circulariam para além dos muros da prisão. Esta é também, provavelmente, a única casa da cidade na qual se compõem versos, os quais são impressos e postos a circular mas nunca publicados. Mostraram-me uma lista bem longa de versos compostos por alguns jovens apanhados numa tentativa de fuga, os quais tiraram a sua desforra cantando-os.

[3] Saquei todas as informações que pude ao meu companheiro de cela, com receio de não tornar a vê-lo. Já tarde ele indicou-me a minha cama e incumbiu-me de apagar a luz.

[4] Para mim, ficar ali aquela noite foi como viajar para um país distante, que eu amais sonhara conhecer. Senti que antes nunca tinha verdadeiramente escutado o relógio da cidade nem os sons do entardecer, uma vez que ali dormíamos com a janela aberta do lado de dentro da grade. Foi como ver a minha cidade natal à luz da Idade Média e o nosso rio Concord se tivesse tornado no Reno, com visões de cavaleiros e castelos desfilando diante de mim. Eram as vozes de burgueses medievais que me chegava da cidade. Tornei-me involuntariamente espectador e ouvinte do que se passava na cozinha dum albergue próximo – experiência totalmente nova e estranha para mim. Tive então uma visão mais próxima que nunca da minha cidade natal – agora, sim, encontrava-me bem no seu interior. Nunca antes conhecera afinal as suas instituições. E esta era afinal uma das suas instituições mais características, tratando-se de uma sede de município.(1) E comecei a compreender de que género eram os seus habitantes.

[5] De manhã, o pequeno-almoço era-nos passado por um orifício na porta à justa, numa bandeja quadrada de lata, com um copo de chocolate, pão castanho e uma colher de ferro. Quando voltaram, fui suficientemente “caloiro” para deixar ir na bandeja o pão que sobrara mas o meu companheiro conseguiu ainda tirá-lo, e disse-me para o guardar para o almoço ou jantar. Pouco depois ele saiu para ceifar nas searas próximas onde ia todos os dias, não voltando antes do meio-dia. Por isso desejou-me um bom dia dizendo que duvidava se me voltaria a ver.

[6] Quando saí da prisão – posto que alguém interviera, pagando o tal imposto por mim – não me apercebi de tão grandes mudanças como alguém que entrasse um jovem e saísse já grisalho. E no entanto uma importante mutação da realidade – a cidade, o Estado, o país – se tinha operado aos meus olhos; bem maior do que o pouco tempo de prisão podia ter permitido. Eu via agora mais distintamente o Estado no qual vivia. Eu via agora a que ponto as pessoas entre as quais eu vivia podiam ser dignas de confiança como bons vizinhos e amigos. A sua amizade era afinal só para os dias bons e eles nunca se esforçariam muito para proceder rectamente. Percebi que eram como que de uma raça diferente de mim, pelos seus preconceitos e superstições, como os Malaios e os Chineses. Nos seus sacrifícios pela humanidade não corriam quaisquer riscos, nem comprometiam as suas riquezas. Não eram, afinal, assim tão nobres, tratando o ladrão da mesma maneira que ele os tratara. Esperavam, enfim, a salvação das suas almas, por via de alguma piedade exterior, preces e por atravessarem de tempos a tempos uma certa passagem abandonada. Posso estar a julgar muito severamente os meus conterrâneos, posto que muitos deles nem se aperceberão de que têm semelhante instituição - a cadeia - na sua terra.

[7] Na nossa terra, antigamente, era costume saudar um devedor pobre que acabasse de deixar a prisão olhando através dos dedo das mãos, cruzados à maneira de a grade duma janela, e perguntando “como passaste?” Os meus vizinhos não me cumprimentaram assim mas começaram por olhar para mim e depois entre eles, como se eu acabasse de regressar de uma longa viagem. Eu fora levado para a prisão quando ia ao sapateiro buscar uns sapatos consertado. Libertado na manhã seguinte, propus-me concluir a minha busca e, tendo calçado o sapato já composto, fui até uma festa de trabalhadores rurais, ansiosos por que eu os conduzisse. E em meia hora – porque o cavalo foi prontamente aprestado – estávamos num campo de amoras, sobre uma das nossas colinas mais altas, a duas milhas ali, de onde já se não podia ver qualquer sinal do Estado.

[8] E eis toda a história de “as minhas prisões.”(2)

[9] Nunca recusei pagar portagem nas estradas, pois estou tão disposto a ser um bom vizinho como a ser um mau súbdito. E quanto a apoiar o ensino, já estou a fazer a minha parte trabalhando na educação de alguns concidadãos. Não é por causa de qualquer item em particular que eu me recuso a pagar o imposto. Eu apenas desejo recusar a minha lealdade para com o Estado, retirar-me e manter-me afastado dele de modo efectivo. Não me interessa, mesmo que pudesse, seguir a rota de cada um dos meus dólares até ele comprar um homem ou uma arma com que atirar-lhe – o dólar é inocente – mas eu preocupo-me em seguir consequências da minha lealdade. De facto, eu serenamente declaro guerra ao Estado, porque me apetece, muito embora ainda pretenda fazer todo o uso dele e desfrutar de todas as suas vantagens que me for possível aproveitar, como se costuma fazer nestes casos.

[10] Se outrem pagar o meu imposto, por simpatia com o Estado, não faz senão o mesmo que já fizera também para si, isto é, estão dispostos a implantar a injustiça numa extensão bem maior do que o Estado exige. Mas se eles pagam o meu imposto por efeito duma atenção excessiva para com o contribuinte, para salvar as suas propriedades, ou impedi-lo de ir parar à cadeia, é apenas porque não cuidaram com suficiente atenção a que ponto os seus sentimentos pessoais e privados poderiam interferir com o bem comum.

[11] Esta é, então, a minha actual posição. Não se pode jogar demasiado à defesa numa situação destas, e ainda menos permitir que a nossa acção seja determinada pela obstinação ou por uma excessiva deferência com a opinião pública. Deixemos cada qual decidir-se e motivar-se para trabalhar no que lhe interessar e quando lhe interessar.

[12] Por vezes penso: “Mas porquê? Esta gente tem bons propósitos – mas age assim apenas por ignorância”. Agiriam melhor se soubessem como. Porquê causar aos vizinhos esta maçada, forçando-os a tratar-nos de um modo para o qual não se sentem inclinados? Mas pensando melhor, concluo que isso não será razão para passar a agir como eles, ou permitir que outros passem por sofrimentos bem maiores e de outro tipo. Ás vezes digo para mim mesmo “quando muitos milhões de homens, a frio, sem má vontade, sem ressentimentos de qualquer tipo, te exigem um pouco de dinheiro, sem te dar a possibilidade de retratação ou reponderação dessa exigência - assim determina a sua constituição – ou sequer de te permitir apelar para quaisquer outros milhões de pessoas, para quê expores-te a uma força bruta tão avassaladora? Não resistes assim obstinadamente ao frio ou á fome, ao vento ou às ondas. Submetes-te docilmente a mil outras necessidades – mas não pões a cabeça dentro do fogo.

Mas apenas na medida em que eu não considero esta inteiramente uma “força bruta” mas parcialmente humana, e considero também que tenho alguma relação com uns e outros milhões de homens – não coisas brutas e inanimadas – então é que eu vejo que o recurso é possível. Posso recorrer, desde logo, deles para o seu Criador, mas também deles para eles mesmos. Ora se eu puser a minha cabeça no fogo, não tenho recurso possível para o fogo ou para o Criador do fogo – e só me posso queixar de mim mesmo. Se eu me convencesse de que eu tenho algum direito de me contentar com os homens tal e qual eles são e tratá-los em conformidade, em vez de os tratar como, em alguns aspectos, eu considero que eles deviam ser, então - como um bom Muçulmano(3) e fatalista – eu deveria contentar-me com as coisas tal qual elas existem, e dizer que essa é a vontade de Deus. E acima de tudo haverá sempre aquela diferença entre resistir a esta força ou a uma outra puramente bruta e natural. É que a esta eu posso resistir com alguma eficácia. Mas já quanto à outra, como Orfeu(4), não posso acreditar no meu poder de mudar a natureza das rochas, das árvores ou as feras.

[13] Não desejo questões com homem ou nação alguma. Não quero esmiuçar, realizar distinções subtis ou supor-me melhor que os outros. Antes pretendo, se assim posso dizer, uma escusa para me conformar com as leis da terra. Estou pronto a conformar-me com elas. Na verdade tenho boas razões para suspeitar de mim mesmo e cada ano, à aproximação do cobrador os impostos, encontro-me sempre disposto a passar em revista os actos e posição do governo geral e Estadual bem como o espírito do povo, a ver se descubro um bom pretexto para a minha conformidade

“ Temos de amar o nosso país como aos nossos pais;

E algum dia perdermos este amor e esforço por o honrar

Devemos respeitar os efeitos e ensinar à alma

Os assuntos da consciência e da religião,

E não desejar poder ou benefício”(5)

[14] Eu acredito que o Estado em breve há-de ser capaz de me retirar este peso de cima, e então eu já não serei melhor patriota que os meus concidadãos. Numa perspectiva mais terrena, a Constituição, com todas as suas falhas, é bastante boa. A lei e os tribunais são muito respeitáveis. Mesmo o Estado e este governo americano são, a muitos títulos e conforme bastantes autores os descreveram, admiráveis e dignos de gratidão. Mas elevando um pouco a perspectiva, eles aparecem-nos como eu os descrevi. E olhando ainda um pouco mais de cima, do ponto mais elevado, quem dirá o que eles são? Quem dirá que eles são sequer dignos de ser olhados ou repensados?

[15] Todavia, o governo não me preocupa muito, e eu pretendo ocupar o meu pensamento o menos possível com ele. Não são, afinal, muitos os momentos que eu vivo sob um governo, mesmo neste mundo. Se um homem é livre de pensar, livre de sonhar, livre de imaginar, então aqueles que nunca lhe aparecem durante muito tempo, governantes e reformadores obtusos, não podem interrompê-lo irremediavelmente.

[16] Bem sei que a maioria dos homens pensa de maneira diferente da minha. Mas mesmo aqueles que, por profissão, decidiram estudar este tema e outros conexos, também não me satisfazem. Estadistas e legisladores, tão completamente embrenhados na instituição, acabam por nunca a poder ver clara e distintamente. Eles falam da “sociedade em mutação”, mas não têm qualquer ponto de apoio sem ela. Podem ser homens de certa experiência e distinção, e sem dúvida inventaram sistemas engenhosos e até úteis, pelos quais sinceramente lhes estamos reconhecidos, mas toda a sua sabedoria e utilidade está confinada a certos e não muito amplos limites. Tendem a esquecer que o mundo não é governado pela política e pelos expedientes. Webster nunca participa no governo, e por isso não pode falar com autoridade sobre ele. As suas palavras são sábias para aqueles legisladores que não pretendem operar reformas no sistema de governo actual. Mas para aqueles pensadores e para os que legislam para todo o tempo, ele não é sequer assunto. Sei de alguns cujas sábias e serenas especulações sobre este tema, facilmente revelariam os limites do alcance e argúcia da sua mente. No entanto, comparado com o profissionalismo barato da maioria dos reformadores, e com a inteligência ainda mais barata dos políticos em geral, as suas palavras são quase as únicas com alguma sensibilidade e relevância. Apesar de tudo, damos graças a Deus por ele.

Comparativamente, ele é sempre forte, original e sobretudo prático. A sua qualidade maior não será a sabedoria mas a prudência. A verdade do advogado não é a Verdade, ma antes uma consistência ou um expediente consistente. A Verdade não está sempre em conformidade consigo mesma. E também não terá como principal preocupação mostrar que a Justiça possa consistir em agir erradamente... Webster bem merece ser chamado, como já aconteceu, de “Defensor da Constituição”. Não se há realmente outros golpes para ele que não sejam os defensivos. Ele não é um líder mas um seguidor. Os seus líderes são os homens de 1787(6) “Nunca fiz qualquer esforço” – diz ele - “nem pretendo fazer; Nunca apoiei nem pretendo apoiar qualquer esforço para perturbar o acordo originalmente estabelecido pelos Estados que formaram a União.” Referindo-se à sanção da Constituição à escravatura, diz-nos ele, “Porque ela faz parte do sistema original – deixemo-la ficar como está.”(7)

Apesar da sua excepcional argúcia e capacidade, ele é incapaz de separar um facto das suas meras circunstâncias políticas e considerá-lo tal como ele se apresenta ao intelecto. Perguntemo-nos, por exemplo, o que deve um homem fazer hoje em dia na América em relação à escravatura? Ou se aventura na acção, correndo os riscos inerentes, ou determinando-se a pronunciar-se em termos absolutos, é necessariamente levado a dar uma reposta que reflicta a sua desesperança. Ora destas duas alternativas que códigos de conduta social poderão ser inferidos?

“A forma” – dirá ele (Webster) – “ como os governos dos estados esclavagistas a regulamentam é da sua conta; fica dentro da sua responsabilidade para com os seus cidadãos, as leis naturais da propriedade, humanidade, justiça e para com Deus. As associações criadas noutros locais, inspiradas em sentimentos de humanidade ou outros, não têm nada que ver com isso. Nunca receberam nem receberão qualquer encorajamento meu.”

[17] Aqueles que desconhecem as fontes mais puras da Verdade, que não percorreram as suas correntes até à nascente, detêm-se, sabiamente, de resto, a beber com respeito e humildade da Bíblia e da Constituição. Mas aqueloutros que conseguem ver de onde essa Verdade brota gota a gota para este lago ou aquela piscina, voltam a calçar as botas para prosseguir a sua peregrinação até às nascentes.

[18] Nunca apareceu na América ninguém com o génio do legislador. E são raros na história do mundo. Existem políticos, oradores e homens eloquentes aos milhares. Mas ainda não abriu a boca aquele orador capaz de formular as questões verdadeiramente pertinentes. Deixamo-nos embalar e seduzir pela beleza intrínseca da oratória, mas não por qualquer Verdade que ela nos traga, ou por qualquer heroísmo que nos inspire. Os nossos legisladores ainda não foram capazes de perceber o valor que para uma nação têm o comércio livre, a liberdade, a união e a rectidão. Eles já não têm sequer génio para as questões relativamente mais simples da fiscalidade e finanças, comércio, indústria e agricultura. Se ficássemos à mercê da verborreia dos oradores parlamentares para nossa orientação cívica, sem a correcção da experiência real e das queixas do povo, a América não aguentaria muito tempo o seu actual estatuto entre as nações. Há mil e oitocentos anos - embora eu não tenha grande autoridade para dizer isto – que o Novo Testamento foi escrito. E onde está o legislador com suficiente sabedoria e talento prático para recolher a luz que ele lança sobre a ciência da legislação?

[19] A autoridade do governo, mesmo aquela a que eu estarei disposto a submeter-me é sempre impura – e eu estarei de bom grado disposto a submeter-me a quem seja mais capaz do que eu; e em muitas coisas, até àqueles que não sejam tão capazes ou saibam tanto como eu. Para ser estritamente justa, ele carece da sanção e consentimento dos governados. Não poder arrogar-se de qualquer direito puro sobre a minha pessoa e os meus bens, a não ser aquele que eu lhe conceder. O progresso da monarquia absoluta para a democracia é o progresso rumo ao verdadeiro respeito pelo indivíduo. Mesmo o filósofo chinês(8) era suficientemente sábio para ver o indivíduo como a base do império. Será a democracia, tal como a conhecemos, o estádio mais perfeito de governo? Não será possível dar ainda um passo mais em frente, reconhecendo-se o organizando-se os direitos do homem? Nunca haverá um Estado verdadeiramente livre e iluminado enquanto este não reconhecer o indivíduo como um poder superior e independente, do qual derivam todos o seu poder e autoridade – tratando-o então em conformidade com esse estatuto. Agrada-me imaginar um Estado que, ao menos, se permita ser justo para com todos os homens e trate cada indivíduo com respeito, como a um vizinho – e que inclusivamente não se deixasse perturbar com a ideia de que alguns escolhessem viver apartados dele, sem o importunar mas igualmente sem o abraçar, cumprindo todos os deveres de boa vizinhança e companheirismo. Um Estado que produzisse este tipo de fruto e o oferecesse aos seus cidadãos tão cedo estivessem maduros, prepararia o caminho para uma forma de governo ainda mais perfeita e gloriosa, que eu também imaginei mas ainda não vi em nenhum lugar.

Notas:

  1. Naquele tempo, Concord era sede de município
  2. Referência a “Le Mie Prigioni” de Sílvio Pellico (1789-1854), sobre os seus 8 anos como preso político, tradução inglesa de 1833
  3. Ou islamita
  4. Na mitologia grega, um músico cujas composições podiam encantar as pedras, as árvores e as feras
  5. George Peele (1557?-1597?), Batalha de Alcazar, (apenas em edições tardias)
  6. Redactores da Constituição em 1787
  7. Daniel Webster (1782-1852), num discurso ao Senado americano
  8. Provavelmente Confúcio (551-479 AC)

terça-feira, maio 29, 2007

declaração de adesão à greve geral de 30.05.07

Cara D. Glória,

Aceite os meus cumprimentos de sincera estima pessoal.

Perante mim, e não desejando de nenhuma fora beliscar a estima pessoal que lhe tenho, a D. Glória assume neste momento o ingrato papel de representante e "face visível" do poder ao qual estou temporariamente submetido e me exige que declare se amanhã, dia 30, faço ou não faço greve. Nessa medida, entendo dever transmitir-lhe não só a minha decisão mas igualmente um breve resumo dos seus fundamentos. E o que lhe peço é que não se limite a reportar "para cima" o número dos que no dia de amanhã se recusarão a colaborar com um governo que, em meu entender, não dignifica Portugal, ofende gravemente o seu amor à Vida, à Honra e à Verdade, e atrapalha as suas legítimas aspirações de progresso moral e material. Peço-lhe, pois, que reporte também a "declaração de greve" que aqui lhe deixo. Se as pessoas não são meros números, as suas posições certamente não valerão também apenas pelo resultado quantitativo. E, em especial, quando se dispõem ao auto-sacrifício de prescindir do seu "pão de cada dia", merecerão - pelo menos - que se escute as suas razões.

E as minhas razões são as seguintes:

1. Portugal merece um Legislador e um Executivo que promova o desenvolvimento sustentável do país - de todo o país - promova a plena acessibilidade, e uma igualdade de tratamento entre os cidadãos;
2. Os portugueses merecem que as decisões colectivas, em particular dos maiores investimentos públicos, sejam tomadas com base em critérios de racionalidade e transparência;
3. Portugal merece uma Democracia dos cidadãos em vez duma partidocracia que disfarça uma real plutocracia; os cidadãos exigem acesso a uma participação cívica consequente, ao espaço público de debate (serviço público de radio e televisão); reclamam o respeito pelos princípios de boa governança nos orgãos de poder central e local; os jovens, em particular, pedem a antecipação da idade de maioridade civil e uma "machadada" no sistema que os actuais políticos (velhas raposas) montaram para garantir a sua eternização nos lugares-chave, impedindo na prática a renovação das classes dirigentes, a entrada dos jovens na vida activa com a dignidade a que têm direito e arrastando como consequência-limite, a recessão e atraso do país.
4. Os portugueses querem um governo que promova as condições para a criação de emprego em Portugal;
5. Os portugueses exigem Justiça do seu Poder Judicial; merecem respeito pela sua Liberdade de Consciência, garantias da liberdade de expressão e de pensamento;
6. Os portugueses merecem ter acesso a cuidados básicos de saúde, onde quer que decidam viver;
7. As famílias portuguesas merecem a protecção do Estado, merecem ver reconhecido o seu papel de garantes da continuidade e renovação da sociedade e cultura portuguesas;
8. Os empresários portugueses, sustentáculos da economia, do emprego que resta e única esperança para o emprego a criar, merecem um Estado-parceiro e não um Estado "salteador de estrada", mais preocupado em lhes "sacar o dízimo" e facilitar a vida aos sectores "amigos do partido" do que em criar condições gerais de sanidade e transparência dos mercados e verdadeira Justiça Fiscal.
9. Os mais fracos, os mais pobres, os infortunados da mais diversa ordem merecem uma política de inclusão respeitadora da sua dignidade individual e colectiva, que promova a reabilitação, requalificação e a prioridade à reintegração numa actividade, em claro detrimento da trágica política herdada do séc. XX de inactividade subsidiada.
10. Portugal merece um primeiro-ministro que fale Verdade sobre si e sobre as suas políticas;

E por considerar que as políticas seguidas por este Governo - e por outros no passado - não concorrem, muito pelo contrário, para a realização destas legítimas aspirações dos portugueses, entendi em consciência ser meu dever de cidadão que amanhã, dia 30 de Maio de 2007, a minha posição deverá ser entre os que fazem greve.

Guimarães, 29 de Maio do 2007 (email 15h26)
Luís Filipe Botelho Ribeiro, professor auxiliar

(Escola de Engenharia da Universidade do Minho)

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(email 15h30)

Acrescento apenas que a minha declaração de há minutos vale para todo o dia de amanhã, pedindo desde já que seja contabilizada quer na parte da manhã quer da tarde - e com a devida e correspondente penalização salarial.

Melhores cumprimentos,
Luís Botelho Ribeiro

greve geral de 30 de Maio

greve...
Faço, não faço?...

Andava para ler o manifesto, convocatória, caderno reivindicativo ou lá como aquilo se chama... à procura de pontos de "convergência" que pudessem convergir com alguma das causas que me opoem ao actual poder instituído.

Quis a sorte - se calhar, bem - que antes de ler as "cassetes" escritas da CGTP, me deparasse com o despacho do Ministro das Finanças relativo à suposta "transparência" dos números da greve. E creio já não ser preciso ler o resto!

Como é possível que alguém inteligente e sério possa acreditar naquilo que ali está escrito? Então se tantos funcionários da administração não têm acesso a computador e tantos outros só têm acesso no local de trabalho, como é que vão preencher o tal inquérito até às 11h30 do dia? E se não o preencherem, estando de greve, como é que algum dia os números fornecidos por um tal processo podem ser apelidados de "mais credíveis"?

Das três, uma!
Ou quem escreveu aquilo, sendo inteligente e sério, não acredita naquilo que escreveu...
Ou quem escreveu, se acredita naquilo, não é inteligente...
Ou não é sério.

Uma coisa tomo por certa. Apesar do risco de alinhar com um acto de resistência e desobediência civil organizado por alguém com cujas posições em tantos domínios não nos identificamos, ficar de fora, neste momento, não parar amanhã, em atitude crítica e desafiante ao poder nú do grupo de Sócrates, seria - ainda pior - um sinal de conformidade com a clique que nos tiraniza, acabrunha e, em última instância, nos empobrece.

segunda-feira, maio 28, 2007

D. António Marcelino - Bravo!

Bispo acusa PS de seguir orientação da Maçonaria *





O bispo emérito da diocese de Aveiro acusa o PS de andar "publicamente de mãos dadas com a Maçonaria", garantindo que o objectivo é "fechar o Homem à dimensão do transcendente, por via da educação e dos meios de comunicação social". Segundo D. António Marcelino, "a Maçonaria portuguesa está a aparecer, de novo, com algum espírito de 'carbonária', eivada de um acirrado laicismo, tendo no horizonte os 'valores republicanos', lidos unilateralmente, e empenhando-se por introduzi-dos como inspiradores das leis que devem reger o povo".

Em artigo escrito para a sua coluna semanal do jornal Correio do Vouga, o prelado mostra-se preocupado com a crescente influência das lojas maçónicas ao nível do Estado, as quais, em seu entender, impõem orientações ao partido socialista.

"Impor é matar e destruir", atesta, frisando que aquele movimento está empenhado em "fechar a Igreja Católica na sacristia, em ignorar os valores cristãos, em fazer tábua rasa de uma cultura milenária e em mudar o sentido das instituições que dão consistência à sociedade".

Se este "laicismo redutor" corresponder ao "programa 'político' actualizado do partido socialista", então da democracia apenas "restará um povo decapitado", sendo o PS uma mera "galeria vistosa, com muita gente alienada e encostada", afirma. Em todo este cenário, sublinha, a Maçonaria assume uma "estratégia táctica de servir e de se servir de um poder sem ideologia". Mas, adverte, "as prioridades num país que empobrece têm de ser outras, se quisermos sobreviver".

Pós-invernação

"O sol da Primavera é propício para trazer à luz o que as tocas escondem em invernos prolongados", explica o prelado emérito de Aveiro. Isto, para dizer que "o ambiente político se tornou propício e a ocasião convidativa para que a Maçonaria começasse a apresentar os seus projectos para o país". Mas, alerta, "a democracia não é um fim, nem pode servir de meio para que o poder, qualquer que ele seja, se aproveite dos postos de comando para empobrecer e dominar um povo livre".

Evocando a história, D. António Marcelino - bispo titular da diocese de Aveiro entre 1988 e 2006 - entende que o objectivo da obediência maçónica foi sempre o de influenciar o poder, desde a Primeira República.

"O apoio que então deu à Carbonária, motor organizado da queda da Monarquia, e a identificação conseguida com a jovem República, inspirando ou fazendo seus os ditos 'valores republicanos', deram-lhe impulso para dominar", explica, frisando: "Isto permitiu-lhe conduzir o processo do início do novo sistema, minando os órgãos da soberania, desde a Presidência da República ao Parlamento, destruindo o que não dominava e conquistando uma presença efectiva, marcada e visível, nos lugares de influência do Estado."

Mesmo durante o Estado Novo, em que esteve remetida à clandestinidade, a Maçonaria fez acordos "secretos" com o poder. "Até nos tempos de Salazar que, olhando para o lado, cedeu na orientação de serviços públicos conhecidos e cobiçados", atesta o prelado. A seguir ao 25 de Abril, "o novo poder fez-lhe a entrega de bens antes expropriados e pagou-lhe indemnizações". Agora, está de mãos dadas com o PS", conclui .|


* retirado de http://dn.sapo.pt/2007/05/28/sociedade/bispo_acusa_de_seguir_orientacao_mac.html

JCNeves - A Caminho do sucesso no meio do disparate

Recebi hoje mesmo de Pedro Aguiar Pinto o seguinte texto excelente (mais um) de João César das Neves (publicado no DN de hoje) que, com a devida vénia, reproduzo e brevemente comento no final:

A CAMINHO DO SUCESSO NO MEIO DO DISPARATE

João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp..pt

A Fundação Richard Zwentzerg nasceu em 1999 para estudar o atraso e subdesenvolvimento no mundo mas, logo no início da actividade, ficou fascinada com o caso de Portugal. É famoso o seu relatório de Março de 2000, O País Que não Devia Ser Desenvolvido - O Sucesso Inesperado dos Incríveis Erros Económicos Portugueses. Aí se dizia: "Portugal fez tudo errado, mas correu tudo bem. Os disparates cometidos na sua História são enormes. Só comparáveis com o sucesso que tiveram. Nenhum outro povo do mundo conseguiu construir... e destruir tantos impérios em tantas épocas e regiões. Hoje é um país rico, mais rico que 85% da população mundial. Mas conseguiu isso violando todas as regras do desenvolvimento."
A instituição publicou uma pequena colecção de estudos documentando a nossa realidade, até que a actual crise económica criou novo desafio. Estaria Portugal afinal sujeito às regras gerais? Iria pagar finalmente o preço dos seus muitos erros? Para responder acaba de surgir um novo estudo sobre o nosso país, após um silêncio de quase quatro anos (o anterior é de 2003 e, como todos, só é acessível no DN).
Os especialistas continuam a defender a sua teoria inicial, encontrando elementos únicos nesta realidade, agora no meio das dificuldades. Ainda é cedo para proclamar o resultado, mas, como diz o título do texto, Portugal está "a caminho do sucesso no meio do disparate".
O primeiro capítulo nota com satisfação como, desde o último estudo, se mantém por cá o nível da nova geração de enormes erros e tolices. Os estádios do Euro 2004, as OPA e a nova lei do tabaco, o descalabro das universidades e o plano tecnológico, três governos e quatro ministros das Finanças em quatro anos, o endividamento do País e a derrapagem dos custos laborais. Com a Ota e o TGV a asneira promete continuar. O País mantém-se fiel à tendência histórica.
Mas em Portugal disparates tão grandes vêm sempre a par de grandes melhorias. A fundação afirma que mais uma vez isso acontece. A economia portuguesa sofre uma mutação notável, com um grau de recuperação e adaptação à globalização raramente igualado. Os sinais são evidentes. A taxa de transformação estrutural da produção é talvez maior que em qualquer década anterior. O influente sector têxtil tradicional desapareceu de súbito com efeitos que se diluíram rapidamente. Os serviços, que eram 66% do produto nacional há dez anos, subiram para mais de 73% do total. Apesar disso, as exportações aumentaram 30% desde 2000 e modificaram largamente a sua orientação, quer sectorial quer geográfica. O País, supostamente em recessão, absorveu 400 mil imigrantes, fortalecendo a evolução. Todos estes e outros factos notáveis mostram como no meio da crise está a nascer o futuro surto de progresso.
Entre os portugueses ninguém reparou. Só se ouvem as queixas de estagnação e desemprego, custos inevitáveis da magna adaptação à "nova economia". Por vezes alguém nota como no meio da crise as praias, o Algarve e os centros comerciais estão cheios e a vida continua calma e relativamente próspera. Mas não se tiram conclusões e recai-se na lamúria. Estudos e especialistas repetem estribilhos que inventaram há séculos: "O modelo está esgotado", "Este país não tem solução". Até o Governo, que é interessado em sublinhar os êxitos, não viu nada e aposta em projectos nefastos, reformas tímidas, sonhos mirabolantes. Enquanto estraga tudo com as despesas descontroladas.
O relatório insiste nas semelhanças entre esta situação e o percurso das excelentes décadas anteriores, onde o País mudou radicalmente no meio de erros, zangas e lamentos. Ignorando as incríveis novidades nas suas empresas e mercados, os portugueses ocupam-se das questões tolas de sempre. Ou até mais tolas, arrisca a análise, pois a licenciatura do primeiro-ministro, aborto, ataque à família e confusão nas autarquias atingem níveis antes desconhecidos.
Portugal faz tudo mal, como sempre. Mas depois, sem saber como, safa-se. Como diz a frase tão tradicional: "Não há-de ser nada".

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Caríssimo Pedro Aguiar Pinto,

A partir de Lisboa talvez seja legítima a (ilusória) perspectiva de que Portugal "safa-se", desenrasca-se... Aqui para cima é muito mais evidente o segredo deste "desenrascanço", face à "safadeza" dos nossos actuais líderes. Como já escrevi no meu blogue*, a emigração diária ou semanal para Espanha (com os seus enormes custos pessoais, familiares e sociais) é que está a ser uma das válvulas de escape para uma pressão que de outro modo, acabaria por explodir. Os frequentes acidentes com carrinhas de trabalhadores portugueses não são um dado inócuo de sentido político. Ainda há uma semana uma reportagem apresentada a desoras (como convém à manutenção deste estado de coisas) na SIC (salvo erro), ilustrava este terrível drama quase silencioso, que eu conheço bem e de bem perto, vivendo em pleno vale do Sousa. A verdadeira desgraça dos portugueses é que quando traduzem esta realidade na (subtil mas falsificável) linguagem dos não-votos... não são compreendidos pela sua nomenklatura político-jornalística.

Realmente é verdade que "isto não tem solução" com esta gente. Mas também é verdade que os portugueses vão continuar a ter de resolver primeiro o seu problema pessoal e familiar, antes de tratar como mereciam os tratantes que os (des)governam. O choro dos filhos em casa fala mais alto! Até um dia... Por mim, não acho que o problema da mentira do primeiro-ministro sobre a sua "engenharia" seja uma "questão tola" - além de sinal de outras mentiras (mais graves mas menos facilmente desmascaráveis). Como português que ainda preza alguma coisa a sua Honra, vexa-me a ideia de que um tal indivíduo ande pela Rússia a fazer-se passar por meu representante!

Luís Botelho Ribeiro


* em http://cidadaniapt.blogspot.com/2007/04/henry-thoreau.html

quarta-feira, maio 23, 2007

desobediência civil - 2ª parte


de Henry Thoreau - 1849

tradução de Luís Botelho Ribeiro a partir de texto online

[1] Os erros mais difundidos e entranhados apoia-se na mais desinteressada das virtudes para se sustentar. [L1] E são precisamente os caracteres nobres aqueles que mais facilmente incorrem nos defeitos contrapostos às Virtudes do patriotismo. Aqueles que, ao mesmo tempo que desaprovam o carácter e as medidas dum governo, lhe prestam lealdade e apoio, tornam-se os seus mais conscienciosos cúmplices [L2] e, não raro, os mais sérios entraves a qualquer possibilidade de reforma. Há quem promova petições para a dissolução da União(1), ou defenda a inobservância das decisões presidenciais. Mas porque não a dissolvem eles próprios - a união entre eles próprios e o Estado – recusando pagar a sua contribuição para o tesouro? Não permanecem eles no mesmo tipo de relação com o Estado que existe também entre este e a União? E as razões que têm dissuadido o Estado de se opor à União, não serão as mesmas que os têm dissuadido a eles próprios de resistir ao Estado?

[2] Como pode um Homem dar-se por satisfeito com o ter meramente uma opinião, como para se entreter e divertir? Poderá retirar algum prazer da opinião de que se encontra afinal agrilhoado? Se alguém for defraudado pelo seu vizinho num único dólar, certamente não se acalmará com a noção de ter sido enganado, nem com o lamentar-se do sucedido nem mesmo com o simples acto de reclamação. Antes dará passos efectivos no sentido de recuperar o valor do prejuízo e certificar-se de que não voltará a acontecer. A Acção decorrente de princípios e Valores – percepção e realização do Direito – determina as coisas e as relações, é essencialmente revolucionária e totalmente inconsistente/incompatível com o quadro a superar. Isto dividirá Estados e Igrejas, famílias – dividirá até o indivíduo, separando o que nele há de diabólico e divino.(citar a passagem bíblica do novo testamento: vim trazer o fogo; a Verdade irá virar pais contra filhos e filhos contra pais…etc.)

[3] Existem de facto leis injustas. Dar-nos-emos por satisfeitos em obedecer-lhes, devemos trabalhar para as emendar - obedecendo-lhes, ou… deveremos transgredi-las sem demora? Debaixo de um governo como este, as pessoas geralmente pensam que é melhor esperar até conseguirem persuadir a maioria a alterar as Leis. Consideram eu, se resistissem, os efeitos da cura seriam piores do que o próprio mal a remediar. Mas é o Governo que torna a cura pior do que a doença. É o próprio poder que faz piorar as coisas. Por que não se mostrará ele igualmente apto para se antecipar aos problemas, fazendo as reformas? Por que não escuta ele as vozes mais sábias, embora minoritárias? Porque barafusta e resiste à mudança para depois ter de mudar com sofrimento? Por que não encoraja ele os cidadãos a estarem alerta e lhe apontarem as imperfeições e procederem ainda melhor para com o Estado do que o este com eles? Por que razão acabará sempre o Poder por crucificar Cristo, excomungar Copérnico(2) ou Lutero(3) e proclamar Washington e Franklin como rebeldes?

[4] Poderia pensar-se que a contestação prática e deliberada da autoridade do Estado seria a única ofensa não prevista/penalizada por este. Caso contrário, por que não terá ela previsto as correspondentes penalizações, convenientemente definidas e proporcionadas? Se um Homem sem posses se recusar alguma vez a ganhar os nove xelins para o Estado, será posto numa prisão por período não limitado por qualquer Lei que eu conheça mas sim pela discricionariedade dos que lá o colocaram. Mas se ele roubar do Estado noventa vezes os nove xelins, então em pouco tempo estará de novo em liberdade.

[5] Se a injustiça é indissociável do atrito na máquina do Governo, pois seja. Com o tempo e com o desgaste da máquina, talvez se vá suavizando. Mas se a injustiça tem uma mola, uma polia, uma corda ou uma manivela exclusivamente sua, então seremos talvez levados a reflectir se a cura não será pior do que o mal. Mas se a injustiça for de molde a precisar de ti como seu agente sobre alguém, então eu dir-te-ei: rompe com a Lei. Faz da tua vida uma fricção extra, resolvida a parar a máquina. O que eu devo fazer a todo momento é, então, certificar-me de que eu não me entrego ao mal que eu mesmo condeno.

[6] Quanto a seguir as vias que o próprio Estado tiver previsto para remediar a situação, eu desconheço tais vias. Elas seguramente tomarão demasiado tempo e a nossa vida ter-se-á entretanto esgotado. Por mim, tenho mais com que me preocupar. Não vim a este mundo para o tornar habitável, sem mais, mas antes para o habitar – seja ele um bom ou um mau lugar para isso. A um Homem não pode pedir-se que faça tudo - mas sim alguma coisa. E porque lhe será impossível realizar todo o bem que falta, também não há-de conformar-se a colaborar com o mal. Não é maior a minha obrigação de dirigir petições e requerimentos ao Governo ou ao Legislador do que a deles em relação a mim próprio. E se eles não atendem as minhas, por que razão hei-de eu atender as suas? Mas quanto a isto nada prevê o Estado – na sua própria Constituição reside a essência do mal. Estas palavras podem soar excessivamente rudes e inconciliatórias mas estou a tratar até com brandura e consideração o único espírito que as pode merecer. Assim são todas as mudanças para melhor, como o nascimento ou a morte que convulsionam o corpo.

[7] Não duvido que aqueles que se auto-proclamam de abolicionistas deviam retirar imediatamente o seu apoio, cívico e material, ao governo do Massachusetts, e não ficar à espera de constituírem uma maioria de metade mais um que lhes permita prevalecer. Eu considero que é suficiente que eles sintam que Deus está do seu lado, sem ter de esperar mais. E mais – qualquer homem mais justo que os seus vizinhos já constitui só por si uma “maioria qualificada”.

[8] Avisto-me com o Governo americano, ou um seu representante, directamente face a face uma vez ao ano – não mais – na pessoa do seu cobrador de impostos(4). Este é o único modo pelo qual um homem na minha situação necessariamente se cruza com ele. E nessa ocasião ele diz-me muito claramente: - reconhece-me! Então o modo mais simples, eficaz e, actualmente, o modo mais incontornável de tratar com ele, de lhe expressar descontentamento, é negar-lhe o pagamento. O meu vizinho, cobrador de impostos, é precisamente o homem com quem eu devo tratar – uma vez que é com homens e não com papeladas que eu tenho de me entender. E ele terá assumido voluntariamente esse papel de agente do Governo junto de mim. Pois como há-de ele algum dia perceber o que realmente é, enquanto representante do governo e até enquanto homem, senão quando se vir obrigado a tratar-me a mim, que ele até respeita, como aquele vizinho bem-disposto e cordial, ou como um maníaco problemático e agitador. E veremos então se ele consegue cingir-se às regras da boa-vizinhança ou esquecê-las cedendo a pensamentos e até palavras de rudeza correspondente à sua acção? Sem bem que a haver mil, cem ou até dez Homens honestos que eu pudesse citar – enfim, se um único cidadão HONESTO deste estado do Massachusetts, deixando de manter escravos, chegasse ao ponto de se retirar do “pacto social” com o Estado, acabando por se sujeitar à prisão, isso bastaria para abolir definitivamente a escravatura da América. Com efeito, não importa quão pequeno possa parecer um primeiro passo: o que ficar bem feito, fica feito para todo o sempre. Mas nós preferimos falar sobre o assunto – essa, dizemos, é a nossa missão. As reformas mantêm muitas parangonas dos jornais ao seu serviço – mas nem um único Homem. O meu estimado vizinho, embaixador do Estado,(5) que vai dedicar os próximos tempos a levantar a questão dos direitos do homem na Câmara do Conselho, em vez de se ver ameaçado com as remotas prisões da Carolina, podia entregar-se a uma das prisões do Massachusets – esse Estado sempre tão pronto a censurar o esclavagismo do Estado seu vizinho. Actualmente, esta talvez não veja na disputa mais do que uma simples retaliação por um incidente passado, relativo a certa falta de hospitalidade. Talvez daquela maneira a questão viesse a ser tratada seriamente nesta legislatura, durante o próximo Inverno.

[9] Sob um governo que prende cidadãos injustamente, o verdadeiro lugar de um Homem justo deverá ser uma prisão. O lugar próprio hoje em dia, o único lugar que o Massachusetts tem preparado para os seus espíritos mais livres e inconformados encontra-se nas suas prisões. Aí ficarão colocados de parte por acção do Estado, da mesma forma como, pelos seus princípios, eles próprios já se haviam posicionado. É aí que vêm encontrá-lo o escravo foragido, o resistente mexicano e o índio ali trazido para expiar os erros da sua raça.

Esse lugar apartado, mas livre e honrado, onde o Estado coloca todos aqueles que não estão consigo mas contra si, é a única casa que, num Estado esclavagista, um homem livre poderá habitar com Honra. Se alguém pensar que a sua influência, a partir dali, será nula e a sua voz incómoda não mais chegará aos ouvidos do Poder; que não poderá ali ser como um inimigo dentro de muros, então é porque ignora até que ponto a Verdade é mais forte do que o Erro. E também ignora quão mais eficaz e eloquentemente pode combater a injustiça quem a sofreu na própria pele.

Entregue o seu voto inteiro. Não uma mera tira de papel mas toda a sua capacidade de intervenção e influência. Uma minoria é impotente enquanto se conforma com a maioria – e não chega a ser sequer uma minoria então. Mas torna-se irresistível quando se opõe com todo o seu peso. Se a alternativa for entre encarcerar todos os homens justos, ou desistir da guerra e da escravatura, o Estado não hesitará na sua escolha. Se mil homens decidissem não pagar os seus impostos este ano, essa não seria uma medida violenta ou sangrenta, ao contrário do que aconteceria pagando e permitindo assim ao Estado cometer as suas violências e derramar sangue inocente. Esta é de facto a definição de uma revolução pacífica, se tal for possível. Se o cobrador de impostos, ou qualquer outro funcionário, me perguntar – como já aconteceu – “mas então que devo eu fazer?”, a minha resposta será: “se você quer realmente fazer alguma coisa, então demita-se de funções”. Quando o súbdito recusa lealdade e o funcionário se demite então a revolução está consumada. Mas suponhamos mesmo que algum sangue venha a correr. Não há também uma espécie de derramamento de sangue quando a consciência é ferida? Através dessa ferida jorrarão a verdadeira humanidade e imortalidade do Homem, e ele sangrará até à sua morte eterna. Vejo este sangue ser derramado nos nossos dias.

[10] Até aqui, debrucei-me sobre a prisão do transgressor, e não ainda sobre o confisco dos seus bens – embora ambas sirvam o mesmo desígnio – porque aqueles que vivem na mais escrupulosa correcção, e que consequentemente são os mais perigosos para um Estado corrupto, normalmente não terão passado muito tempo a acumular riqueza. A estes, o estado presta relativamente pouco serviço, e o mais pequeno imposto já parecerá exorbitante, particularmente se tiverem que pagá-lo com algum trabalho manual extra.

Se alguém vivesse dispensando inteiramente o uso de moeda, talvez o próprio Estado hesitasse em pedir-lhe dinheiro. Mas o homem rico – sem se pretender com isto apelar à inveja – está sempre vendido à instituição que o mantém assim. Em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; uma vez que o dinheiro se interpõe entre um homem e os objectos, conseguindo-lhos. E não foi certamente a virtude que lhe permitiu ganhá-lo. O dinheiro vem colocar em suspenso muitas questões que de outro modo ele teria de enfrentar. Por outro lado a única questão que traz consigo é: “como gastá-lo?”

Deste modo, o seu terreno moral desaparece-lhe de debaixo dos pés. As oportunidades de viver diminuem na exacta proporção em que os chamados “meios” aumentam. A melhor coisa que um homem, sendo rico, pode fazer pela sua cultura é procurar ajustar-se ao mesmo esquema de Vida que seguia enquanto pobre. Cristo respondeu aos agentes dos fariseus e de Herodes segundo a sua condição. “Mostrem-me a moeda do tributo”, disse ele. E alguém tirou uma moeda do bolso. Se usais uma moeda cunhada com a face de César, a que ele conferiu valor e pôs a circular – ou seja, “se sois súbditos do Estado” – e se apreciais as vantagens do governo de César, então devolvei-lhe algum do seu dinheiro quando vo-lo reclamar. “Entregai então a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”(6). E assim os deixou nem mais nem menos sábios do que antes sobre o que é o quê – já que também não queriam saber.

[11] Quando converso com os mais livres dos meus vizinhos, percebo que ao fim e ao cabo eles nunca dispensarão a protecção do governo instituído e têm pavor das consequências de uma eventual desobediência para as suas propriedades e famílias. E verifico isto independentemente do que afirmem sobre a dimensão e importância da questão, bem como a ligação desta com a tranquilidade pública.

Pela minha parte, não gosto de pensar que alguma vez me possa encontrar dependente da protecção do Estado. Mas se eu nego a autoridade do Estado quando ele me exige o imposto, não passará muito tempo até que ele me tome e dissipe os bens, e passe a incomodar-me a mim e aos meus filhos indefinidamente. Isto custa-me. Isto torna impossível a um Homem viver honestamente e ao mesmo tempo confortavelmente perante o mundo exterior. Deixa de valer a pena trabalhar para construir algum património, o qual acabará por desaparecer a seguir. Deve-se antes alugar ou simplesmente ocupar alguma casa devoluta e cultivar qualquer coisa para consumir imediatamente. Deve-se viver d forma contida e contando apenas consigo, sempre de malas feitas, sempre pronto para recomeçar tudo e não ter muitos negócios nem deixar demasiados assuntos pendentes. Um homem pode fazer riqueza até na Turquia, se for a todos os títulos um bom súbdito do governo turco. Dizia Confúcio, “Se um país é governado segundo os princípios da razão, a pobreza e a miséria serão motivo de vergonha;(7) mas se um país não se rege pela razão, então as horas e riquezas é que deverão ser motivo para vergonha”. Não, enquanto eu não pedir a protecção do Estado de Massachusetts nalgum porto distante do sul, onde a minha liberdade corra perigo, ou até que me decida a consagrar-me aqui à acumulação de propriedades através do meu trabalho pacífico, posso-me permitir recusar a lealdade ao Massachusetts e o seu direito aos meus bens e à minha vida. Custa-me menos, em todos os sentidos, incorrer nas penalidades da desobediência do que obedecer-lhe. Sentir-me-ia a valer menos a meus olhos, nesse caso.

[12] Há anos, o Estado procurou-me da parte da Igreja e ordenou-me o pagamento de certa soma para um pregador que meu pai frequentava, mas não eu. “Paga” – disse-me – “ou irás preso.” Declinei o pagamento. Infelizmente, outra pessoa achou bem fazê-lo por mim. Eu não via por que razão havia o professor de pagar para o pregador e não ao contrário, posto que eu não era um professor do Estado e vivia das propinas voluntárias dos meus alunos. Não via porque não havia de ser o liceu(8) a apresentar o seu título de imposto, sendo o Estado a fazê-lo em seu nome, tal como fazia com a Igreja. No entanto, a pedido do Conselho, condescendi em pôr por escrito a declaração que segue: “saibam todos os que esta virem que eu, Henry Thoreau, não quero ser tido por membro de nenhuma sociedade que eu não haja explicitamente aderido.” Entreguei-a ao funcionário da cidade que agora a lá tem. O Estado, percebendo então que eu não queria ser visto como um membro daquela igreja, não mais me fez tais exigências desde então, embora me dissesse na ocasião que teria de se cingir sempre àquela presunção. Se eu soubesse os seus nomes, teria então requerido também a minha desfiliação de todas as sociedades a que nunca aderi. O problema era que não sabia onde encontrar uma lista completa.

[13] Há seis anos que não pago o meu imposto. Por esta razão, fui certa vez metido na prisão por uma noite. Enquanto observava as sólidas paredes de pedra, espessas de dois ou três pés, a porta de madeira e ferro, com a espessura de um pé, e a grade de ferro que coava a luz, não podia deixar de me espantar com a estupidez dessa instituição que me tratava como se eu fosse uma mera massa de ossos e carne que se pudesse prender. Imaginei que, com o tempo, ela tivesse concluído ser esse o melhor uso a dar-me, e não lhe tivesse ocorrido utilizar os meus serviços de algum outro modo. E realizei que, se havia agora uma parede de pedra entre mim e os meus concidadãos, então haveria também outra ainda mais intransponível para eles se poderem sentir tão livres como eu. Não me senti confinado nem por um momento. As paredes pareceram-me um grande desperdício de pedra e massa. Senti-me como se apenas eu, em toda a cidade, tivesse pago o imposto. Obviamente, não sabiam como lidar comigo mas comportavam-se como gente mal-educada. Porfiavam nas ameaças ou insultos, pensando que o meu único desejo fosse estar do outro lado daquela parede. Não pude deixar de sorrir de ver quão industriosamente eles fechavam a porta sobre o meu pensamento, deixando-o então livre de obstáculos para os seguir até lá fora – e eles eram ali afinal o único e verdadeiro perigo. Com não podiam atingir-me, tinham resolvido punir o meu corpo – tal qual rapazes que não podendo fazer mal a alguém, vão maltratar-lhe o cão. Ali percebi que o Estado não é muito esperto e chega a ser tímido como uma viúva com as suas pratas, incapaz de distinguir amigo de inimigos. Perdi-lhe o respeito que ainda tinha e cheguei a lamentá-lo.

[14] Por conseguinte, a intenção do Estado nunca é a de confrontar-se com a consciência moral ou intelectual de um homem, mas sim com o seu corpo e os seus sentidos. Não detém uma inteligência ou honestidade superior, mas antes a força física. Mas eu não nasci para viver forçado e hei-de respirar à vontade. Veremos quem é mais forte. Que força tem a multidão? Eles só me podem forçar a obedecer a uma lei superior a mm. Eles forçam-me a ser como eles mas eu não atendo aos homens que se sujeitam a viver assim ou assado ao sabor das massas. Que vida seria essa? Quando topo um governo que me diz “a bolsa ou a vida?” porque haverei de me apressar a dar-lhe a bolsa? Até pode estar em apuros e não saber o que fazer: não posso impedi-lo. Ajude-se a si mesmo: faça como eu faço. Não vale a pena ficar a lamentar-se. Eu não serei o responsável pelo bom funcionamento da máquina da sociedade. Nem sou filho do engenheiro. Apenas me apercebo de que quando uma bolota e uma castanha caem juntas, uma não se deixa ficar inerte para facilitar o crescimento da outra. Ambas obedecem à sua própria lei, florescendo e crescendo o melhor que podem até que uma, porventura, cubra e destrua a outra. Se uma planta não consegue viver de acordo com a sua natureza morre, e mesmo sucede com um homem.

Notas

  1. “nenhuma União com os proprietários de escravos”, tornara-se um mote dos abolicionistas;
  2. Nicolau Copérnico (1473-1543) polaco, fundador da astronomia moderna; o seu trabalho “sobre as revoluções” foi dedicado ao Papa Paulo III e publicou-se m 1543 e o seu autor não foi excomungado.
  3. Martinho Lutero (1483-1546), monge alemão, mentor da reforma protestante.
  4. Sam Staples, funci0nário local, cobrador de impostos em Concord
  5. Samuel Hoar (1778-1856) de Concor enviado pela Assembleia Legislativa do Massachusetts para a Carolina do Sul, para protestar contra a penalização de marinheiros negros libertados, tendo sido forçado a regressar. A sua filha era amiga próxima dos Emersons e amiga de infância de Thoreau
  6. Ev. S. Mateus 22:19-22
  7. “Os analectos”, Confúcio, 8:13
  8. Uma sala onde se promovia a leitura pública

L1 - a este propósito evocamos uma quadra do poeta popular algarvio António Aleixo
Pr'á mentira ser segura
e atingir profundidade
tem de trazer à mistura
qualquer coisa de verdade
L2 - o problema do cidadão conformado entronca no chamado "colaboracionismo" nos países ocupados por potências invasoras. A diferença é que aí o inimigo é mais facilmente identificável - por vezes até etnicamente - logo distinto da população oprimida. Infelizmente a desinstalação deste conformismo não muito mais argumentos fortes do que a ideia glosada por Brecht de que "a seguir podes ser tu" - e com isso conta o poder nu.

Apoio ao Professor Fernando Charrua contra directora da DREN


* ASSINE A PETIÇÃO DE APOIO *

De todas as informações vindas a público nos últimos dias, parece-me que a decisão de punir disciplinarmente o Dr. Fernando Charrua, expulsando-o da DREN, constitui um acto prepotente da responsabilidade da actual Directora Regional de Educação do Norte, Dra. Margarida Elisa Santos Teixeira Moreira. Expulsar sumariamente um profissional das suas funções, sem o ouvir, baseado no testemunho indirecto de um delator, e - sem desmentido convincente - por causa de um comentário jocoso (mas não insultuoso) sobre uma situação
(triste ou risível) de domínio público envolvendo o Primeiro-Ministro, constitui, em minha opinião, uma arbitrariedade e abuso de poder inaceitável em qualquer regime assente na liberdade de opinião e expressão.

Depositamos alguma esperança na intervenção do Sr. Provedor de Justiça, e nas consequências que podem e devem ser estraídas pelo Ministério da Educação da (sempre ponderada e credível) intervenção pública do Doutor Jorge Miranda. Ao invés de recusar ir ao parlamento, ou lavar as mãos deste assunto como o Secretário de Estado, parece-nos que a Sra Ministra da Educação não pode ignorar que a sua responsabilidade nesta situação será chamar a Directora da DREN, sua subordinada e credora de confiança política, para se inteirar do caso e agir (ou não) em conformidade.

Pela nossa parte, embora materialmente incapazes de impedir este tipo de arbitrariedades contra outros ou contra nós, queremos deixar aqui o testemunho da nossa solidariedade total com o Prof. Charrua, associando-nos aos protestos de tantos cidadãos, da blogosfera, da imprensa e até de diversos partidos políticos, com a estranha excepção do Partido Socialista. É também contra este estado do nosso Estado que se bate o CidadaniaPT.

Este episódio envergonha a Democracia portuguesa e todos os cidadãos cuja anuência tácita ao "contrato social", involuntariamente, acabam por sancionar um Estado que, em seu nome, assim procede. Continuemos a ler Thoreau e a agir em conformidade.

sexta-feira, maio 18, 2007

de excommunicatione

Quem me pode obrigar a falar com quem não quero ou escutar quem me não interessa?

Reflectindo sobre as diferentes possibilidades de resistência não-violenta ao Estado, apareceu-nos, quase a "talho de foice", a discussão sobre a excomunhão dos políticos pró-aborto do México, avisados da possibilidade de (auto-)excomunhão pelos bispos, secundados pos S.S. o Papa Bento XVI. Realmente, o corte da comunicação-comunhão pode ser uma forma muito efectiva de reprovação civil, desde que mantida de forma concertada pelo número de cidadãos suficiente e durante o tempo suficiente.

Esta prática tem cobertura até na informação dada aos interrogados: "você tem o direito de não prestar declarações". Salvo melhor opinião, o cidadão tem então o direito de não ler / não ouvir aquilo que o Estado lhe escreve ou diz. Ou será que não tem? Afinal um cidadão mudo, surdo ou cego pode ter limitados os seus direitos em virtude da sua situação de deficiência? E não existe o prioncípio da Igualdade? O sistema não deve poder funcionar de igual modo para estes ou para aqueles que simpesmente não estejam dispostos a prestar mais atenção à comunicação estabelecida por canais estatais? E se tantas vezes o Estado nos faz isto (não responder às petições e cartas dos cidadãos ou responder "chapa 5"), porque não poderemos nós devolver-lhe a postura? Rasgar as e deitar ao lixo as multas que nos deixa no limpa-vidros, guardar sem abrir ou deitar fora as cartas que nos cheguem de quaisquer instituição pública, enfim submeter-se apenas às ordens que lhe cheguem pessoalmente e acompanhadas da devida força de coacção para não poder de forma eficiente resistir-lhes mas sempre em silêncio: não serão tudo formas de inacção salvaguardadas no âmbito da liberdade pessoal?

É muito interessante que a maior penalização da mais antiga(?) instituição na Terra seja precisamente o corte da comunicação, uma secular política de não-violência cuja eficácia a sociedade-civil ainda não terá apreendido completamente. Eis o que agora proponho - usemos com o Estado desta forma de reprovação que ele em tantos momentos já terá usado connosco - assim nem sequer estaremos a "abrir as hostilidades".

A Igreja Católica tem vastíssima reflexão escrita sobre esta matéria - como referência de entrada nesse mundo pode-se citar:
http://www.intratext.com/X/LATSA0042B.HTM





Sobre a "irresponsabilidade dos responsáveis" escrevi em tempos:

Quod scripsi, scripsi

O governante português típico não escreve. Não escreve, não envia fax ou email que seja. Não fossem as notáveis virtudes da fita magnética e da cavilha telefónica (na Bahia são grampos...) nas mãos diligentes dos novos pides e a todas as palavras o vento as levaria.

Na melhor das hipóteses, manda telefonar, manda dizer, põe a circular, “confidencia” à inconfidente imprensa (é o seu mester), deixa escapar a “fuga”... É um estilo (ou falta dele) que se institui com o passar do tempo e até podemos ser tentados a explicar historicamente com a “política do segredo” de D. João II ou, logisticamente, com a previsível falta de papel a médio prazo, quando nos tiver ardido de vez toda a floresta e não houver mais “papel” para papel. (paper for paper, qual food for oil)

Por uma ou outra razão ou para não “dar erros” ou por ser simplesmente analfabeto ou iliterato funcional, certo é que o responsável público português gosta pouco de escrever e prefere falar. Talvez para depois poder sempre negar ter dito o que disse, ou dizer que não disse bem assim ou que disse algo parecido mas num contexto completamente diverso. A única excepção que abre é quando o interlocutor é um tribunal. Aí escreve, escreve e só na última lá vai e fala, se não pode pôr outro a responder por si.

E, nisto, é o governante de hoje um digno sucessor da escola do primeiro rei, o conquistador vimaranense em cuja boca, referindo-se à escrita, põe o grande Herculano palavras mais ou menos assim “esses gatafunhos, à fee, foi cousa que nunca entendi nem quero!” Sabiamente, confiava em quem lhe lia os decretos reais, os forais e limitava-se a selar. O hábito de selar, como se sabe, mantém-se. E o próprio papel selado não há muito que foi banido e nos deixou em paz.

A sina de ter que sancionar ou votar decretos e leis que se não entendem, mesmo sabendo lê-los, continua a persegui-lo ainda hoje. Vinga-se como pode, dedicando um desprezo mortal a “quem sabe”, aos técnicos, à autoridade mental ou moral, ao cientista. Pela sua parte, não sabe e tem raiva a quem saiba. Ao professor que se lhe apresente com algumas certezas e raras dúvidas, rapidamente o arruma numa prateleira e tenta esquecê-lo, não vá ele um dia sonhar voltar a candidatar-se à presidência da República...

Podendo, prontamente o mandaria às fogueiras da inquisição ou, hoje, às da imprensa – as únicas com suficiente poder de co-incineração e padrões de arbitrariedade, “independência” e sede de escândalo adequados à sinistra missão. Se o cidadão não se “mexer” muito, apesar de tudo, se não fizer muito “estrilho”, até pode ser deixado no relativo sossego da excomunhão administrativa. Mas quando realmente “há merda grossa”, eis que nos aparece o cidadão na TV ostentando os volumosos dossiês de abaixo-assinados e apelos não respondidos, alertando para o caso muito antes da coisa.

“Ele é” o cidadão de Sintra, fiel ao seu hobby de anos protestando contra o bairro mal licenciado junto do qual cai um avião. “Ele é” a antiga Secretária de Estado da Família que vê arquivadas as suas denúncias de situações obscuras na Casa Pia. “Ele é” o presidente da câmara de Castelo de Paiva, anos a fio, insistindo na necessidade de reparação da “sua” ponte antes de ela tragicamente ruir. Quem escreve, responsabiliza-se e pode ser preso. Melhor não escrever, nada decidir e ir ao parlamento dizer que a ponte está “firme e para durar”. Se não está, como não esteve, há sempre um parecer escrito, assinado por um engenheiro qualquer para lançar às feras.

Se sobre o político, num tal caso, só impende a “pena máxima” da demissão e uma conveniente quarentena mediática, porque diabo é que as 14 vítimas do alumínio de Évora levaram Leonor Beleza ao banco dos réus com uma acusação de crime com dolo, ou seja, com alegada intenção malévola? E porque é que as 60 vítimas de um Estado, que ou não mantém as suas pontes ou as derruba com barragens mal governadas, não levam a tribunal qualquer responsável político? Dois anos já lá vão e por menos (sem envolvimento em crimes de morte) há um ex-ministro, um ex-embaixador e outros suspeitos presos.

Por isso tudo, melhor não escrever – pensa o tal responsável português. Mas talvez se engane com o povo. Afinal de contas, que voz corre sobre o duro governador romano Pilatos que escreveu e confirmou, perante o coro de protestos dos príncipes dos sacerdotes, tudo o que escrevera? Que se livrou de responsabilidades e... lavou as mãos.

L.B.R. in "espírito de Guimarães", Ed. Cidade Berço, 2005

quinta-feira, maio 17, 2007

cidadãos livres de todo o país, uni-vos!

agora é na câmara de Lisboa que os independentes repetem as queixas que já formulávamos na caminhada para as presidenciais de 2006... e tantos outros antes e depois disso.

Como no texto de Brecht, enquanto eles nos conseguirem levar um a um, nada mudará…

Evocando a genial tirada de Brecht na versão do blogue (re)nascido:

Primeiro despediram os funcionários públicos,
mas eu não me importei, não sou funcionário público.

Depois proibiram a greve dos professores,
mas eu não sou professor.

Depois proibiram a manifestação dos militares,
mas eu não sou militar.

Depois foram os juízes, os polícias, os enfermeiros,
mas eu não sou juiz, nem polícia, nem enfermeiro.

Agora estão a bater-me à porta, mas já é tarde
...

quarta-feira, maio 16, 2007

A "engenheiria independente", segundo as Queimas


No cortejo do "enterro da gata", esta tarde em Braga, surgiram algumas chalaças alusivas ao tema da licenciatura do cidadão José Sócrates na Universidade Indepedente.

Não é difícil imaginar a festa que te
rá sido em Coimbra, em Aveiro, no Porto e pelas queimas por esse país fora…

Seria interessante recolher o produto da criatividade satírica estudantil sobre este tema quente de 2007.





Prometo publicar (dentro dos limites da decência) o que me chegar via email luisbotelhoribeiro@gmail.com, identificando a academia, curso, ano e autor da fotografia.

terça-feira, maio 15, 2007

desobediência civil - 1ª parte

de Henry Thoreau - 1849

tradução de Luís Botelho Ribeiro a partir de texto online


[1] Aceito de bom grado a divisa: "O melhor governo é o que menos governa"; (1) e gostaria de vê-la aplicada rápida e sistematicamente em todo o lado. No limite ela conduz-nos a esta outra na qual também acredito: "o melhor governo será mesmo aquele que não governar de todo" - e quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que irão escolher.

Um Governo é, na melhor das hipóteses, um expediente de "conveniência". Porém muitos governos são habitualmente - e todos o serão alguma vez - inconvenientes. As objecções que têm sido colocadas à manutenção de um exército permanente – numerosas, ponderosas e credoras de atenção – podem também servir para questionar a necessidade de um Governo permanente. O exército permanente é apenas o braço armado dum governo permanente. O próprio Governo, que não é mais do que a maneira que as pessoas encontraram para realizar a sua vontade, está igualmente sujeito a abuso e perversão antes mesmo de que os cidadãos possam actuar através dele. Atente-se na actual guerra mexicana(2), obra de relativamente poucos indivíduos servindo-se do governo vigente como seu instrumento. De outra forma, o povo não teria consentido numa tal medida.

[2] Este Governo americano, o que é ele senão uma tradição, embora recente, procurando perpetuar-se sem impedimentos/limitações para a posteridade - embora perdendo a cada instante que passa uma parte da sua integridade? Não tem a vitalidade e a força de um simples Homem, já que um único homem o pode fazer vergar à sua vontade. É uma espécie de arma de brinquedo virada contra os próprios cidadãos. Mas nem por isto é menos necessário, já que as pessoas precisam de mecanismos complicados, de ouvi-los trabalhar, para satisfazer a sua ideia de necessidade dum governo. A existência do Estado demonstra quão prontamente os homens estão dispostos a sujeitar-se e a impor-se uns aos outros para seu próprio bem. Esta situação é excelente, temos de admitir. No entanto, esse mesmo Estado nunca por sua iniciativa fez avançar algum empreendimento, a não ser pela prontidão com que em alguns casos soube sair da frente para desobstruir o caminho. O Estado não mantém o país livre. Não pacifica o oeste. Não educa. Tudo o que se conseguiu, pela força de carácter dos americanos é que se fez. E mais se teria realizado se o Governo não se tivesse por vezes intrometido no caminho. O Governo é um expediente para que os homens possam, de bom grado, deixar-se uns aos outros em paz; e será tanto mais expedito quanto os governados mais forem deixados em paz por ele. O comércio, os negociantes, se não fossem como borracha da Índia, (3) nunca conseguiriam ultrapassar os obstáculos que o legislador continuamente coloca no seu caminho. E se estes legisladores fossem um dia julgados apenas pelas consequências efectivas dos seus actos e não parcialmente desculpados pelas suas boas intenções, seriam condenados e tratados como vulgares criminosos, assaltantes de comboios ou salteadores de estrada.

[3] Mas para falar de modo prático como cidadão, e não como certos que se auto intitulam “homens sem responsabilidades políticas”, (4) eu não reclamo imediatamente “morte ao Estado”, mas sim “melhor Estado”. Que cada homem faça saber que tipo de governo mereceria o seu respeito, e esse será desde logo um primeiro passo para tal se conseguir.

[4] Afinal, a razão prática pela qual quando alguma vez o poder cai nas mãos do povo, e o governo passa a reger-se pela regra da maioria, possivelmente até durante um período longo, não é porque esta maioria sejam especialmente dotada de razão ou inteligência mas porque simplesmente… é mais forte. Porém, um governo da maioria não é capaz de fundar-se sempre na Justiça, mesmo na justiça tal qual a percepcionam os homens.

Mas não será possível um Governo no qual não sejam as maiorias mas a consciência a discernir o certo do errado? Um Governo no qual as maiorias se limitem a decidir as questões para as quais valha o critério da conveniência e do expediente? Deve o cidadão nalgum momento abdicar da sua consciência em favor do legislador? Por que razão haveria então cada homem de ter sequer uma consciência? Eu penso que devemos ser Homens primeiro e só depois sujeitos ou súbditos. Não se deve cultivar o respeito pela Lei acima do respeito pelo Direito.

Com verdade se diz que uma empresa não possui consciência; mas uma empresa de cidadãos conscientes torna-se uma empresa com uma consciência. A lei nunca tornou os homens nem um pouco mais justos. E por via do seu respeito pela Lei, mesmo o mais conformado com ela se constitui todos os dias agente de injustiças. Um resultado comum e natural de um escrupuloso e indevido respeito pela Lei é ver-se uma linha de soldados, do Coronel ao capitão, dos sargentos aos cabos, ordenanças(5) e tudo, marchar em admirável ordem por montes e vales para a batalha contra vontade, contra o senso comum e a própria consciência, o que os levará até a estugar o passo e causará uma palpitação especial no coração. Eles não têm dúvidas sobre a natureza tenebrosa da sua tarefa. Todos terão alguma inclinação para a Paz. E então o que são eles? Homens sequer, ou meros fortes e armazéns ambulantes ao serviço de algum inescrupuloso detentor do poder? Visite-se uma Base da Marinha e interpele-se um fuzileiro, tal qual o governo americano é capaz de os produzir por obscuras artes a partir de homens – uma mera sombra e reminiscência da humanidade, um homem lançado vivo borda fora e, dir-se-ia, já sepultado sob as armas, com acompanhamento fúnebre. Tudo isto embora também se possa dizer que:

“Nem um tambor se ouviu, nem uma nota fúnebre,

Quando abreviávamos sua última viagem,

Nem um soldado deu a salva de honra

Sobre a campa onde depositámos o nosso herói.” (6)

[5] A multidão humana serve, pois, o Estado não como homens mas principalmente como máquinas, com os seus corpos. Eles constituem o exército regular, os corpos milicianos, os guardas prisionais, os posse comitatus – espécie de regedor ou junta local - (7) etc. Na maioria dos casos não há um livre exercício do juízo ou até do sentido moral; mas eles colocam-se a si mesmos ao mesmo nível da madeira, da terra ou das pedras; e talvez até seja possível que homens feitos de madeira possam fazer o mesmo serviço. Não nos merecem, pois, mais respeito que um boneco de palha ou um monte de lixo. Têm o mesmo valor que cavalos ou cães. No entanto, gente desta é frequentemente considerada e estimada como bons cidadãos. Outros, tal como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, ministros e altos-funcionários, servem o Estado principalmente com a cabeça. E como raramente fazem distinções de ordem moral, estes são igualmente propensos a servir Deus ou o diabo, supostamente sem intenção. Muito poucos: heróis, patriotas, mártires, reformadores no melhor sentido, e os Homens, servem o Estado também com as suas consciências, e por isso necessariamente lhe resistem tantas vezes – e são por ele normalmente tratados como seus inimigos. Um homem sábio só será útil enquanto homem, e não se submeterá a ser porosa “argila” ou

“tapa o sol com a peneira

mas deixará o seu lugar ganhar pó:

Não nasci para ser propriedade

Para ser uma segunda-linha, controlado,

Ou útil serviçal e instrumento

De qualquer Estado soberano deste mundo”(9)

[6] Aquele que se oferece inteiramente aos seus concidadãos parecer-lhes-á inútil e egoísta; mas aqueloutro que se lhes entrega parcialmente é declarado um benemérito e filantropo.

[7] Como se deve então comportar um homem diante do actual governo americano? Eu respondo – não pode associar-se a ele sem se desgraçar. Eu não posso por um único instante reconhecer essa organização política como o meu governo, sendo este ao mesmo tempo um governo assente na escravatura.

[8] Qualquer homem reconhece o direito à revolução, ou seja, o direito a recusar a lealdade e resistir ao Governo/Estado quando a sua tirania ou a sua ineficiência são patentes e persistentes. Mas quase todos dirão também não ser esse o caso, por agora. Mas já dirão que era esse o caso no momento da revolução de 1775.(10) Se alguém me viesse dizer que este é um mau governo porque tarifou certos produtos de importação à chegada aos nossos portos, o mais provável é que eu não fizesse caso, uma vez que posso bem passar sem eles. Qualquer máquina tem os seus pontos de fricção; e possivelmente isto terá também efeitos positivos a contrabalançar outros nefastos. Seja como for, seria um grande erro fazer-se tumultos por causa disso. Mas quando a “fricção” chega a ter a sua própria máquina, quando a opressão e o esbulho se tornam actividades organizadas, então eu digo-vos: livremo-nos desta máquina imediatamente. Por outras palavras, quando um sexto da população, numa nação que se supunha o refúgio da liberdade, é constituído por escravos, e quando um país inteiro é injustamente invadido e conquistado por um exército estrangeiro, para depois ser submetido à lei marcial, então eu considero que já não pode ser “demasiado cedo” para homens honestos se rebelarem e revoltarem. O que torna este dever ainda mais urgente é que, não sendo o nosso o país invadido, é nosso o exército invasor.(11)

[9] Paley, uma autoridade reconhecida em questões de moral, no seu capítulo “dever de submissão ao governo civil”, reduz todas as deveres cívicos a expedientes; e vai mais longe afirmando que “desde que o interesse de toda a sociedade o exija, isto é, enquanto não se puder resistir ou mudar o governo instituído sem inconveniente público, será da vontade de Deus que o governo seja obedecido, mas só então.” – “admitido este princípio, a justiça de cada acto de resistência reduz-se ao cálculo do nível de perigo e de queixa/privação, por um lado, e das chances e custos da mudança, por outro.”(12) Sobre isto, diz ele, cada homem julgará por si. Mas Paley parece não ter considerado aqueles casos em que a regra do expediente não se aplica – situações em que um povo ou um indivíduo têm de fazer justiça, custe o que custar. Se eu disputar e ganhar a prancha a um náufrago, o meu dever é restituir-lha, mesmo que isso me ponha a mim em risco de afogamento. Isto, segundo Paley, seria inconveniente. Mas aquele que pretendesse salvar a sua vida, neste caso, perdê-la-á.(13) Este povo tem de deixar de manter escravos e de fazer guerra ao México, mesmo que isso ponha em causa a sua existência como povo.

[10] Na sua prática, os Estados concordam com Paley; mas alguém acha que o Massachusetts está a proceder bem na presente crise?

“A drab of state, a cloth-o’-silver slut

To have her train borne up, and her

soul trail in the dirt.”(14)

Em termos práticos, os oponentes das reformas no Massachusetts não são os cem mil políticos dos estados do Sul, mas os cem mil mercadores e agricultores daqui, mais interessados no seu comércio e agricultura que em humanitarismo, e que não estão preparados para fazer justiça aos escravos ou ao México, custe o que custar. Não pretendo questões com pessoas remotas mas sim com aqueles que, perto de casa, cooperam e arranjam os recursos para os outros lá longe que, sem estes, seriam inofensivos. Estamos habituados a dizer que a multidão dos homens não está preparada e que os progressos são lentos porque um grupo pequeno não pode, materialmente, ser melhor ou mais sábio que um grupo mais vasto. Não é tão importante que a multidão seja tão boa como um qualquer de nós, mas sim que exista algures uma bondade absoluta., porque essa há-de poder levedar toda a massa.(15) Há milhares de cidadãos com uma opinião contrária à escravatura e à guerra, e no entanto nada fazem para acabar com isso; que, considerando-se seguidores fiéis de Washington e Franklin, ficam-se de mãos nos bolsos, dizem que não sabem o que fazer – e nada fazem; que até secundarizam a questão da liberdade à do livre comércio e pacatamente lêem a coluna dos valores correntes juntamente com as notícias dos últimos avanços no México, depois do jantar e, aparentemente, dormem sossegados. Qual o valor corrente de um homem honesto e patriota hoje? Eles hesitam, lamentam-se a por vezes até fazem abaixo-assinados, mas não fazem nada de sério e consequente. Esperarão, bem dispostos, que alguém faça alguma coisa que remedeie o mal para que não tenham de continuar a lamentá-lo. No máximo chegarão a dar o seu voto barato e uma leve reverência à Justiça, se lhes parecer. Há novecentos e noventa e nove “patronos da virtude” por cada homem realmente virtuoso; Mas é mais fácil tratar com o dono duma coisa do que com o seu guardião temporário.

[11] As votações são uma espécie de jogo, como as damas ou o gamão, com uma ligeira ligação à moralidade; uma brincadeira com o “certo” e o “errado”, com questões morais; e as apostas aparecem naturalmente. O carácter dos votantes não é posto em causa. Eu decido e concedo o meu voto, porventura, conforme acho mais correcto; mas não estou particularmente empenhado em que a escolha “certa” prevaleça. Prefiro deixar isso à maioria. Mas a sua obrigação, então, nunca excederá a do expediente. Então mesmo votar pelo que está “certo” não é realmente fazer o que quer que seja por isso. É simplesmente uma manifestação diante dos homens do seu débil desejo de que o “certo” prevaleça. Ora um cidadão sábio não deixará o “bem” à mercê da sorte, nem desejará que este prevaleça através do poder da maioria. Há muito pouca virtude na acção das multidões. Quando, a prazo, a maioria vier a votar contra a escravatura, será porque se tornaram indiferentes à escravatura ou porque já haja então muito pouca escravatura para ser abolida com o seu voto. Apenas valem na abolição da escravatura os votos daqueles que garantem a sua própria liberdade com esse voto.

[12] Fala-se duma convenção a realizar em Baltimore,(16) ou noutro sítio qualquer, para a escolha de um candidato à presidência, constituída principalmente por editores e por homens que são políticos profissionais. E eu penso – o que vale para um cidadão independente, inteligente e respeitável a decisão a que eles possam chegar? Não teremos confiança na sua sabedoria e honestidade, apesar de tudo? Não poderemos contar com alguns votos independentes? Não haverá muita gente por esse país que não assiste às convenções? Mas não, eu considero que o nosso, por assim dizer, respeitável cidadão mudou imediatamente de posição, desesperando do seu país, quando na verdade o seu país terá ainda mais razões para desesperar dele. Em seguida ele adopta um dos candidatos como o único disponível, provando assim que é ele próprio quem está completamente disponível para quaisquer planos do demagogo. O seu voto não vale mais do que o de qualquer estrangeiro ou trabalhador-nativo, comprado por alguém.

Oh, haja um homem que seja um Homem e, como diz o meu vizinho, tenha um osso nas costas através do qual não passe a nossa mão! As nossas estatísticas falharam: reportam uma população muito mais numerosa que na realidade. Quantos Homens existem por por mil milhas quadradas neste país? Dificilmente se encontra um. Não oferece a América incentivos para a fixação de Homens aqui? O Americano decaiu para uma espécie de membro da Irmandade dos Odd Fellows(17) – alguém que pode ser conhecido pelo seu instinto gregário, mas a quem manifestamente faltam o intelecto e uma graciosa autoconfiança; alguém cuja primeira preocupação, neste mundo, é ver que as “casas dos pobres” estão em boas condições; e que antes mesmo de atingir a maioridade, já recolhe fundos para o sustento das viúvas e órfãos que possam existir; alguém que, em suma, se propõe viver só pela ajuda da Companhia Mútua de Seguros, a qual, por sua vez, promete dar-lhe um funeral decente.

[13] Na realidade, não é dever dum homem dedicar-se à erradicação de algum mal, mesmo do mais aberrante. Ele pode honradamente entregar-se a outras preocupações. Mas é seu dever, pelo menos, lavar dele as suas mãos e, se não quiser pensar mais nisso, deverá abster-se de lhe dar qualquer apoio prático. Se eu me dedico a outras buscas e contemplações, devo ao menos certificar-me de que não o faço pesando sobre os ombros dos outros homens. Devo primeiro retirar-me e deixar de lhes pesar, para que também eles se possam dedicar às suas contemplações. Veja-se que grosseira inconsistência se tolera. Ouvi dizer a alguns dos meus conterrâneos que “gostava que alguém se atrevesse a ordenar-me para ir esmagar uma revolta dos escravos ou a marchar para o México – iam ver se eu ia!” E no entanto todos e cada um destes mesmos homens, com a sua lealdade e, pelo menos indirectamente com o seu dinheiro dos impostos, forneceram um substituto. Aplaude-se o soldado que se recusa a servir numa guerra injusta – mas o que aplaude é o mesmo que não se recusa a sustentar o governo injusto que promove a dita guerra. O objector de consciência é aplaudido por aqueles cujos actos e autoridade ele desrespeita e ignora - como se o Estado levasse a sua penitência ao ponto de contratar alguém para o flagelar pelos seus pecados, mas já não ao ponto de deixar de pecar por um só momento. Assim, em nome da Ordem e do Governo Civil, somos todos finalmente levados a prestar homenagem e a apoiar a nossa própria malevolência. Passada a fase da vergonha pelas nossas faltas, passamos ao estádio de indiferença e de imorais, elas passam a amorais e, com o tempo, chegamos mesmo a vê-las como elementos já não propriamente desnecessários àquela vida que fomos construindo.

Notas:

(1) possível referência a “o melhor governo é aquele que menos governa”, divisa do Magazine dos Estados Unidos e Revista Democrática, 1837-1859, ou “quanto menos governo tivermos, melhor” – R.W.Emerson, “Política”, 1844, por vezes erradamente atribuído a Jefferson;

(2) Guerra dos Estados Unidos com o México (1846-1848), considerada pelos abolicionistas como uma tentativa para alargar a escravatura aos antigos territórios mexicanos;

(3) Feita da seiva de plantas tropicais; “India” porque provinha das Índias Ocidentais, e “borracha” devido ao seu uso inicial como apagador;

(4) Anarquistas, muitos dos quais provenientes do Massachusetts;

(5) Powder-monkeys no original, rapazes que distribuiam pólvora aos soldados;

(6) Charles Wolfe (1791-1823), O enterro de Sir John Morre em Corunna;

(7) Grupo encarregado de manter a Lei sob tutela do Xerife;

(8) Shakespeare (1564-1616) dramaturgo inglês, Hamlet;

(9) Shakespeare, King John;

(10) A revolução americana começou em Concorde e Lexington em 1775;

(11) Referência à escravatura nos Estados Unidos, e à invasão do México pelo Exército norte-americano;

(12) William Paley (1743-1805), teólogo e filósofo inglês, Princípios de Filosofia Moral e Política, 1785;

(13) “quem quiser salvar a sua vida há-de perdê-la...”, Evang. S. Mateus 10, 39;

(14) Cyril Tourneur (1575?-1626) A tragédia dos vingadores;

(15) “... um pouco de fermento faz levedar toda a massa”, 1ª carta de S. Paulo aos Coríntios 5,6;

(16) Em 1848, o Partido Democrático nomeou Lewis Case para candidato à presidência dos estados Unidos, o qual veio a ser batido por Zachary Taylor;

(17) Um membro da Independent Order of the Odd Fellows, uma irmandade com origens em Inglaterra em meados do séc. XVIII