sábado, julho 21, 2007
na sequência do artigo "pro objecção de consciência fiscal"
Há tempos publicámos um pequeno texto "pro objecção de consciência fiscal" em que defendíamos a inclusão de uma opção de objecção de consciência nas declarações de impostos e discutíamos uma possível solução transitória.
Posto a circular, chegaram-nos (informalmente de viva voz ou por email) algumas sugestões e críticas sobre as quais nos propomos agora reflectir. É de salientar que algumas das adversativas foram-nos apresentadas por especialistas de algumas áreas do Direito e da Economia, o que certamente lhes atribui um peso muito superior às tentativas de resposta que a seguir desenvolvemos. Que se nos perdoe o atrevimento tendo em mente que este pequeno trabalho não tem outra motivação senão o bem comum representado pela Paz nas boas consciências, nas consciências dos homens e mulheres de boa-vontade.
Agradecemos todas mensagens que nos dirigiram, e em particular as agudas observações e/ou críticas do Prof. João Carlos Loureiro da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, do Prof. João César das Neves da Universidade Católica Portuguesa e do Prof. Vítor Pereira da Universidade Lusíada. Desejamos ainda agradecer muito especialmente ao Prof. Javier Martinez-Torrón , professor catedrático da Universidade Complutense de Madrid especialista em Direitos Humanos, pelos interessantes exemplos que nos apresentou citando as legislações de Espanha, Holanda e Estados Unidos. Na sua análise comparativa de diversos casos de objecção de consciência ao Sistema Estatal de Segurança Social, devidamente reconhecidos pela lei dos respectivos países, cita concretamente os direitos reconhecidos aos membros de grupos religiosos como os Amish e Christian Science nos Estados Unidos e a Dutch Reformed Church na Holanda. Muito sinteticamente diremos apenas que estas objecções se baseiam na ideia de que é em primeiro lugar sobre a família e a comunidade local que impendem os deveres da Solidariedade Humana. Com nuances, defendem aqueles grupos que a intromissão do Estado Nacional nesse dever assistencial aliena o Homem, "absolvendo-o" de um dos seus principais deveres, desvinculando-o da prestação directa de um dos seus essenciais deveres. E a solução oferecida pelo Estado, observando o principio da igualdade de tratamento, acaba por ser a canalização do mesmo valor da contribuição exigido a todos os outros cidadãos para um fundo especial sob responsabilidade do objector. De cada vez que o objector necessite do dinheiro para si ou para os seus próximos, levanta-o da sua conta contra uma justificação. Os interessados em aprofundar este assunto podem encontrá-lo mais desenvolvido no livro "Las objecciones de consciencia en el derecho español y comparado", McGraw-Hill, 1997 nas páginas 229 e 230.
1. Introdução
Andava na nossa cabeça mas não chegámos a inclui-lo no post original um provérbio português que se aproxima bastante bem do nosso problema de consciência: "tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta". Na Lei penal a figura do cúmplice poderá ter algum tratamento especial mas é também gravemente responsável e punida com (sérias) sanções em muitos casos. Não sendo especialista em Direito, não é difícil perceber que em muitos casos o "mandante", o autor moral dos crimes, é justamente sancionado com penas mais pesadas que os próprios autores materiais. E parece-nos isto bem. Se a memória nos não engana, temos ideia de que foi isto que sucedeu, por exemplo, ao mandante no caso célebre do ataque à "discoteca meia-culpa" em Amarante. Da mesma forma a autoria moral de roubos, assassínios, etc. O "mandante" é sempre, como se compreende, um dos elementos mais procurados na fase de investigação e figura central no julgamento.
Como se há-de, pois, sentir em Paz um contribuinte depois de entregar os seus impostos a um Estado que organiza e executa abortos "a pedido" com o seu dinheiro? Certamente aplicar-se-lhe-á o duro vaticínio de Thoreau de que em certos casos se assiste a um verdadeiro e doloroso "sangrar da consciência ferida". E da mesma forma que as justificações de Eichmann para os seus crimes contra humanidade, dizendo que se limitou a cumprir zelosamente as ordens dos seus superiores nazis, não colheram nem colhem; também o nosso contribuinte não encontrará descanso na justificação de que "obedece a uma decisão tomada pelo método democrático". Se a sua consciência o impede categoricamente de cometer ou contribuir materialmente* para que outros executem os crimes decorrentes de uma questionável escolha duma maioria circunstancial, como pode ele deixar de resistir e desobedecer ao Estado, pelo menos na parte que a ele se apresenta clara e distintamente como uma violência intolerável? Eis a razão essencial pela qual nos parece que algo deve ser feito para travar esta violência do Estado sobre a consciência de alguns dos seus cidadãos, e se não quiser, por outro lado, deixar crescer um forte sentimento de ressentimento que os leve a sentir legitimada a desobediência e a retaliação mais ou menos activa.
2. Inclusão de uma opção de objecção de consciência nas declarações de impostos
Passemos então a discutir uma a uma algumas das questões apresentadas.
2.1) Ao contrário das taxas, os impostos são "gerais", não podendo (em teoria) ser desagregados. Então, como poderá a consciência do cidadão "repudiar" uma parte de um bolo comum? (JCL)
R: A questão da não consignação das receitas, não tem muita lógica, porque a questão aqui é política, não fiscal. Mas como a despesa é tão pequena face ao orçamento, se calhar até tem lógica, pois cada um de nós pode sempre dizer que são os impostos dos abortistas que pagam o aborto (JCN). Por outro lado, como contribuinte, quem me pode impedir de pensar que X% vai para educação, Y% para saúde, Z% vai para o aborto? Aliás não é a esse "apelo ao sentimento de solidariedade social" que os políticos recorrem nas campanhas "pague os seus impostos", "peça sempre a factura", além da semi-falácia (contestada p.ex. por Thoreau) "se todos pagarem, cada um pagará menos..."? De certa forma, o Estado também "desagrega" quando explica ou justifica a necessidade e "moralidade" dos impostos. Quanto à distinção imposto - taxa: para além de no mundo anglo-saxónico os "impostos" serem designados como "taxes", se calhar às diferenças (de ordem técnica) na forma de incidência e colecta não corresponderá uma distinção essencial ou profunda na ordem ético-moral.
2.2) Qual a percentagem do imposto realmente utilizada para pagar os abortos?
R: Bem sabemos que as actuais estimativas do numero de abortos são falíveis e mesmo depois de haver números, a situação irá ter evoluções de ano para ano. O próprio custo global e a comparticipação do Estado poderão variar, o que irá alterando a percentagem dos impostos afecta ao "aborto a pedido". E há ainda a questão dos custos de transporte das grávidas das ilhas para o continente. Mas realmente o ponto mais importante para nós, neste momento, é ver reconhecido o princípio do direito de consciência do contribuinte - e vai crescendo o número daqueles que, mesmo não se tendo colocado essa questão antes, a interiorizaram e assumiram como sua logo que interpelados. Em breve, aquela percentagem poderá ser calculada com o rigor que se quiser. É só uma questão de tempo, não de princípio.
2.3) Mas há inúmeras outras questões que poderiam suscitar objecções de consciência. Só no campo da vida teríamos a questão de dispositivos DIU, das pílulas, das pílulas abortivas, etc. Pode o Estado permitir que cada cidadão decida pagar ou não pagar esta ou aquela parte dos seus impostos? (JCL)
R: É claro que, deixado o pagamento de impostos ao critério absolutamente individual, a receita fiscal seria muito inferior ao que é. Para lá das possíveis virtualidades de uma tal situação (obrigando definitivamente o Estado a moderar o seu consumo), reconhecemos que isso não pode ser assim. Sem dúvida, cada cidadão pode entreter-se a elaborar um Orçamento de Estado virtual, afectando os recursos às políticas públicas conforme as suas preferências. A questão que colocamos é que não se situa no plano das preferências mas no da absoluta violação da nossa consciência. Se outras questões ofenderem tão gravemente a consciência de outros como esta o faz em relação à nossa, pois que lutem como nós nos dispomos a lutar neste momento para que lhes seja respeitado esse direito em concreto. No entretanto, estamos certos que ninguém se disporá a afrontar a força da máquina fiscal e o peso das leis vigentes, mesmo que iníquas, a não ser por graves reservas de consciência e absoluta impossibilidade de um compromisso com a consciência.
2.4) Toda esta linha de argumentação era boa na campanha do referendo, porque tocava num ponto sensível dos eleitor, a sua carteira e a injustiça fiscal. Mas agora, aprovada a lei, insistir no ponto, não revelará mau-perder no jogo democrático e cumplicidade com o mal da evasão fiscal? (JCN)
R: Muitos sustentam que a Democracia será apenas útil para determinar o sentido da vontade geral dos povos, mas já não para estabelecer a Verdade ou definir o que "está certo". Se uma democracia decide invadir o país vizinho, rico em recursos naturais mas fracamente defendido, não será a realização de um referendo nacional - plenamente democrático - que legitimará um acto reprovável à luz do direito internacional. Há, portanto, limites ao tipo de decisões que se podem entregar à decisão pelas urnas. O Aborto "a pedido" é, para nós, exactamente uma dessas decisões cuja concretização vemos cada vez mais próxima. Natural, portanto, será a crescente disposição da nossa consciência e ânimo em resistir-lhe com ou sem a compreensão do Estado. Com o Estado, se este admitir a já referida consignação de parte do imposto a políticas pró-VIda e pró-Família; à revelia do Estado se este insistir na sua política de violentação de tantas consciências.
3. Solução transitória - retenção e entrega de IVA a IPSS's pró-Vida
3.1) Mas muitos trabalhadores por conta de outrem, virtualmente todos, vêm os seus impostos retidos na fonte. Esses, na prática, não têm como reter uma parte do imposto, pois acabam por ver-lhes devolvido mais tarde a parte do imposto que normalmente pagaram a mais. Que fazer então?
R: Tendo embora presente que se trata de uma violação da Lei, se a sua consciência lho impuser, a única possibilidade que terão será a retenção de IVA em algumas das suas compras. Tendo presente o baixo valor em causa, a tarefa não é complicada mas comporta o risco já indicado - da exclusiva responsabilidade do próprio.
3.2) Mas há alguma fundamentação doutrinal para um cristão se permitir recusar dar "a César o que é de César" (o imposto), apesar da célebre resposta de Jesus Cristo aos fariseus?
R: Na realidade, na sua encíclica Evangelium Vitae (pontos 71. a 75.), o saudoso Papa João Paulo II faz um apelo explícito à não obediência a leis iníquas contra a Vida. A fidelidade à consciência cristã e até às Leis Naturais corresponderá então a "Dar a Deus o que é de Deus", e não tanto a recusar a César o que afinal não lhe pertence - as vidas das crianças já concebidas mas ainda por vir à luz do dia.
3.3 Mas será a "desobediência civil" uma forma consequente de trabalhar para o crescimento da nossa sociedade? Não será tudo isto "desperdiçar de forças"?
R: Duvido da existência de uma linha de intervenção certa, única e universal. Vários serão os caminhos que nos podem levar "a Roma" e parece-me difícil estabelecer a priori os que possam estar condenados ao insucesso ou ao êxito. Por exemplo, lendo a excelente argumentação de suporte ao pedido de verificação constitucional por um grupo de deputados portugueses, dei comigo a pensar - 1) está muito bom; 2) tinha de ser feito, dada a decisão do Presidente da República; 3) duvido que, a curto prazo, tenha outros efeitos que não seja o demonstrar a injustiça da "solução" que fez caminho; 4) as minhas "forças"/saberes não poderiam ter ajudado grande coisa a produzir tão excelente peça, embora possa amplificá-la;
Então pode ser que a melhor atitude a adoptar seja aquela em que cada um se empenhe nos trabalhos e acções em que mais acredite e manter a confiança em que, no fim, alguns (talvez não os esperados) acabarão por produzir bons frutos.
3.4) A única forma absolutamente legal de não prestar qualquer colaboração ao aborto em Portugal não será afinal a emigração para país onde não seja permitido o aborto a pedido, e pagando aí os impostos?
R: Esta é uma "possibilidade" terrível - quase uma impossibilidade para a generalidade das pessoas. Mesmo assim, milhares de jovens e menos jovens desempregados partem todos os dias, todas as semanas para Espanha à procura de trabalho. Quem pode garantir que em tantos que assim partem com a alma cheia de desgosto pelo Estado a que chegou o nosso país, não pesará também a falta das mesmas políticas que evitariam em muitos casos o recurso ao aborto? Seja como for, esta forma extremada de exercício da objecção de consciência não é uma verdadeira alternativa. Muito menos poderá ser invocada de forma séria para que o Estado se furte a analisar a nossa proposta. Em última análise, que direito têm "eles" de implicitamente nos expulsarem da nossa Terra, ao criarem nela deliberadamente as condições duma situação política inaceitável para a Consciência cristã ou para a simples ética civil laica.
Se, apesar de tudo, alguns adoptarem esta postura e ela for conhecida publicamente, poderá suceder que isso desperte algumas consciências hoje adormecidas ao canto de sereia do egoísmo mais sangrento. Partir para não abrir uma "ferida a sangrar na consciência", (ver parágrafo 3 do ponto 9 da 2ª parte deste ensaio aqui). Conforme aquelas palavras de Thoreau, este pode mesmo ser o recurso último de quem leve a sério as normas da sua consciência e, por outro lado, uma opção absolutamente legítima de cada um oferecer o curto tempo que lhe é dado viver a projectos em que acredite. E como não há-de alguém acreditar mais numa sociedade que quer crescer e desenvolver-se; do que numa outra - mesmo naquela que lhe serviu de berço - que (in)conscientemente persiste num caminho de suicídio colectivo?
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Conclusão à moda do Porto:
Pró aborto a pedido...
eu "num" pago!
* consideramos o apoio financeiro tão real como qualquer outra forma de apoio material. Aliás, é normalmente esta a forma de articulação entre os mandantes e os executores nos outros tipos de crimes já aludidos.
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