segunda-feira, maio 14, 2007

Que fazer?

Há duas atitudes opostas para encarar o tempo das nossas vidas. A mais ordinária, considera-o demasiado breve e insuficiente para realizar no mundo qualquer obra ou transformação que aos nossos olhos se apresente como boa e necessária. A atitude extraordinária prefere considerá-lo mais do que suficiente para começar qualquer coisa que, se for realmente boa e necessária, outros continuarão e eventualmente concluirão após a nossa passagem.

Com o passar do nosso tempo, vão tomando forma convicções, explicações do mundo, teorias sobre o caos social e ideias sobre o paraíso de uma qualquer "nova ordem". A irremediável incerteza nossa e o fatal cepticismo dos outros acabam por quase sempre adiar e até, no limite, abandonar tantos sonhos de um "mundo melhor". Olhando o futuro, quem pode garantir o acerto dos passos a dar? Como nos podemos certificar de que cada "vantagem" anunciada não esconda mil inconvenientes imprevistos?

Perante estas e outras mil razoáveis dúvidas, sentimos que será sempre necessário um esforço enorme e certo para iniciar o processo para qualquer avanço futuro - necessariamente incerto. Eis como, apesar de parcialmente insatisfeitos com a sua circunstância presente, a maior parte do tempo a maior parte dos homens preferem acomodar-se a incomodar-se. E mesmo quando a lenta deriva social os arrasta para muito longe da terra prometida pelos seus condutores, só muito a custo se dispõem a combater essa distância e a mobilizar as suas próprias forças para a encurtar... no tempo de uma ou mais gerações.

Seria isto talvez mais fácil se cada nova geração que chega à chamada "vida activa" fosse convocada para uma grande assembleia na qual esta estabelecesse as regras segundo as quais gostaria de viver e os objectivos que se propunha atingir. Mas não, os indivíduos vão chegando à vida activa de forma dispersa no espaço e difusa no tempo. As únicas oportunidades para corrigir o rumo parecem ser as revoluções e os livros. Talvez não chegue a fazer verdadeiro sentido estabelecer uma distinção entre estas, posto que há livros que são verdadeiras revoluções; e há revoluções cuja mensagem nos aparece com a clareza de um livro colectivamente escrito.

Um destes livros/revoluções, perece-me, é o texto "desobediência civil" escrito por Henry David Thoreau no já longínquo ano de 1849 e publicado originalmente sob o título "resistência ao governo civil". Inspirador das lutas anti-segregação racial de Martin Luther King, da libertação nacional indiana por Mahatma Gandhi, da resistência Dinamarquesa ao nazismo nos anos 40 do séc.XX, da oposição americana à "caça às bruxas" de McCarthy nos anos 50, da luta contra o Apartheid sul-africano nos anos 60 ou pelo activismo pacifista dos anos 70,
sentimos que estas ideias podem ser de grande utilidade na reflexão sobre o futuro da democracia ocidental neste início de séc. XXI e, em particular, da 3ª República em Portugal, instaurada pela constituição de 1976.

O momento de emergência desta reflexão em Portugal é fértil em circunstâncias relevantes para a mesma. Recentemente uma maioria/minoria de portugueses aprovou uma lei de liberalização do aborto comparticipado pelo Estado, colocando um sério problema de consciência aos contribuintes que não desejam colaborar com os seus impostos na carnificina dos inocentes. Por outro lado, um sério e persistente problema de défice público, já penalizado pelas instâncias europeias, tem servido de pretexto para uma drástica redução dos serviços públicos em diversas regiões do interior do país, particularmente as menos desenvolvidas. Assim, tem-se assistido ao encerramento sistemático de serviços hospitalares (urgências, atendimento nocturno, maternidades) e até hospitais inteiros, ao encerramento de escolas, de esquadras de polícia ou guarda, de aquartelamentos militares (vitais para a economia local de algumas cidades de fronteira). Mas este movimento de "retirada" pública assume também expressão em termos não geográficos. Assim, desaparecem alguns públicos à habitação jovem, à maternidade, benefícios fiscais aos planos poupança-reforma e à educação. E chega-se mesmo ao ponto de assistirmos estupefactos a responsáveis governativos, na televisão, virem pôr em dúvida a sustentabilidade da Segurança Social.

Mais se desmotivam os cidadãos para compreender e aceitar novos sacrifícios que a classe política continua a pedir-lhes, em nome de reformas cujos frutos teimam em não aparecer, quando constatam a desigualdade na distribuição da carga entre os políticos e os restantes cidadãos. A agravar tudo isto, a constante ocorrência de escândalos de corrupção, de peculato pelos titulares de cargos públicos, de abuso de um discurso político eleitoralista assente na manipulação, distorção e até na mais tosca mentira, vem minar a vital relação de confiança entre representantes e representados. Um dos exemplos mais significativos é o caso do "título de engenheiro" do primeiro-ministro e o obscuro processo de obtenção do seu diploma de licenciatura numa universidade privada que tem sido detalhadamente analisado na blogosfera.

Chegados a este ponto, muitos cidadãos fazem "contas à vida" e começam a questionar se realmente lhes interessa o "contrato social" que a sociedade implicitamente lhes outorga. Se a sociedade não lhes põe polícia na rua, escola para os filhos, hospital para os momentos de doença e uma reforma para a velhice então para quê continuar a pagar pesados impostos? Ou então, que os paguem aqueles que tenham razoável acesso a esses serviços ou razoáveis expectativas de vir a ter acesso no futuro. Já se falou em "cheque-ensino" para os pais que, livre ou contingentemente, optassem pelo ensino particular. Assim também se justificaria um "cheque-saúde", "cheque-segurança", "cheque-reforma" que ao menos permitisse aos cidadãos de grupos ou comunidades "abandonadas" pelo Estado, contratar particularmente fornecedores/prestadores alternativos desses serviços.

A dificuldade em fazer admitir tais possibilidades numa sociedade em que os beneficiários suplantem em número e/ou mobilização/militância os cidadãos explorados, dá bem a noção da resistência que à Justiça sempre oferece o interesse egoísta... ainda que da maioria. E pode esta maioria oferecer ao dissidente como alternativa única a emigração? Com que direito se arroga ela o monopólio do território? Serão as benfeitorias operadas pelo colectivo? Mas se grande parte dos caminhos foram feitos pelos caminhantes ao passar e as fontes pelos pastores, com que moral se apropriará o Estado desses créditos? Em última instância, que cobre portagens nas passagens que efectivamente construiu ou mantém, isentando do pagamento os contribuintes sujeitos a imposto.

Mas um Estado verdadeiramente livre e de cidadãos livres, haverá de propor a cidadania como opção livre dos cidadãos; fará do contrato social não um conceito abstracto ou metafísico mas um documento que se subscreve e figura, com todos os direitos e deveres constitucionais inerentes, anexo ao bilhete de identidade. Nesse estado do cidadania, os partidos já não serão os grupos de organização do lobbying sobre o Estado mas as àgoras aonde o pluralismo dos diferentes entendimentos sobre a melhor condução da coisa pública poderão encontrar expressão. Deste modo, cada cidadão terá o mesmo - e igual - peso na escolha dos candidatos em eleições primárias, não podendo para isso ser-lhe exigido o pagamento de qualquer quota. O actual sistema partidário, cria uma situação de grave desequilíbrio de representatividade, uma vez que alguns(poucos) cidadãos, domnando as assembleias (primárias) dos grandes partidos políticos, acabam por determinar as escolhas (pré-formatadas) das assembleias eleitorais electivas. Hoje critica-se a distorção da representatividade na democracia ateniense ou no Senado Romano (sobre-valorizando o voto do povo da cidade de Roma, em detrimento dos povos do império), mas promove-se ao mesmo tempo a subtil supremacia das cliques partidárias sobre o universo dos cidadãos.

Neste contexto, propomo-nos repensar a legitimidade do modelo democrático actual e, em vista de múltiplas e graves distorções, avançar com propostas conducentes a uma democracia mais perfeita em que, ao mesmo tempo que se procura uma melhor enunciação da vontade geral, se garanta o respeito pela consciência pessoal de cada cidadão livre e pelo princípio da subsidiariedade. Algumas das nossas actuais preocupações vão-se cristalizando sob a forma de questões de que a seguir se dão alguns exemplos:

- Pode-se optar pela educação dos filhos numa escola dum concelho diferente da morada fiscal, mas não afectar a esse concelho a parte correspondente do imposto?

- Pode-se passar os anos de reforma numa região (pobre?) de outro país de clima ameno, usando (ou entupindo) os serviços públicos que esse país pagou e paga, sem contribuir para o esforço do seu financiamento?

- Como garantir aos cidadãos a possibilidade de não participar, ainda que de forma indirecta através dos impostos, num esforço de guerra injusto? Como garantir aos cidadãos a possibilidade de não contribuição para o financiamento de políticas de aborto, eutanásia ou outras, ainda que formalmente aprovadas por referendos? Como aperfeiçoar e adaptar a diversos níveis de intervenção pública os princípios do "orçamento participativo", impedindo que grandes projectos colectivos (p.ex. Expo98, Euro2004, novo aeroporto de Lisboa - Ota?, comboio de alta velocidade) continuem a ser decididos nas costas dos cidadãos nos sombrios corredores do lobying, senão mesmo da corrupção activa?

- De que mecanismos de democracia directa se poderá servir o cidadão para, a qualquer momento, fazer valer a sua vontade, p.ex. interrompendo o mandato dum político em quem, por alguma razão, deixou manifestamente de depositar um mínimo de confiança?

- Pode-se colocar todo o dinheiro em bancos estrangeiros, quando o sistema financeiro nacional não lhe dê o rendimento ou as garantias de confidencialidade que o cidadão lhe exija?

- Como se pode impedir a classe política de introduzir mecanismos de controlo (mais ou menos directo) do poder judicial, seja pela nomeação de membros dos Conselhos Superiores de Magistratura, seja dos juízes o Tribunal Constitucional, do Procurador-Geral da República ou do Supremo Tribunal de Justiça?

- Como intervir no sentido de contrariar a manipulação do "serviço público" de rádio/televisão pelo Governo? Distribuindo o serviço público pelos diferentes canais / orgãos de imprensa e deixando os cidadãos premiar os mais isentos, ao preencher o seu boletim de impostos? No fundo não é isso que o cidadão já faz ao premiar uma ONG da sua preferência com uma parte do seu imposto? As boas experiências devem ser aprofundadas.

Certamente, algumas ou todas estas questões já terão assaltado o espírito de muitos cidadãos portugueses nos últimos tempos. E estas são apenas algumas entre muitas com que a sociedade portuguesa se confronta e que, no fundo, questionam a estrutura donde brotam muitos dos problemas concretos que a sociedade superficialmente percepciona mas talvez não chegue a perceber ou entender. Os cidadãos anseiam por uma melhoria da resposta política às suas necessidades individuais e sociais em tempo útil, no tempo das suas vidas. Bom será que algum tipo de estrutura possa assegurar a génese e organização deste processo, o qual, a prazo (e, em teoria, desde sempre) competiria ao próprio Estado e, tanto quanto a história o aconselha, sem revoluções.

Por organização do processo entendemos não apenas a elencagem e discussão de ideias, mas igualmente a sua colocação na agenda mediática e institucional, eventualmente através da constituição de movimento(s) com intervenção eleitoral própria e que assuma para com os cidadãos o compromisso de inscrever na sua constituição interna (e levar à prática) todos os valores e preceitos que for estabelecendo, desde o exacto momento em que os for propondo ao país. Como concretização e contributo próprio, obriguei-me a não deixar toda esta reflexão ficar sem consequências, avançando com a minha própria proposta de "constituição", uma base e desafio para a reflexão de outros.

1. Defendemos a dignidade e inviolabilidade da Vida Humana, da cidadania individual e da Família

2. Na busca activa do bem comum, norteiam-nos os princípios da Doutrina Social da Igreja Católica.

3. Os partidos políticos deverão funcionar sem quaisquer financiamentos particulares, assentes em trabalho voluntário dos seus aderentes, devendo os estatutos e regulamentos ser aprovados em Assembleia Geral (presencial ou virtual) com voto universal (sem limite de idade), com a comunicação interna tendencialmente assente em meios electrónicos - correio electrónico, sms, etc. - e os tempos de antena produzidos e transmitidos no quadro do serviço público de rádio e televisão.

Associado ao desafio para a reflexão, impõe-se também um desafio para a acção - que fazer? Pela minha parte, achei por bem regressar às fontes através da leitura do inspirador pensamento de Henry David Thoreau. A seguir, para facilitar o acesso dos meus concidadãos comecei a traduzi-lo, não tendo na altura encontrado qualquer tradução disponível na Internet. Talvez a sua visão radical e até subversiva - no melhor sentido do termo - o torne incómodo para os poderes instituídos em Portugal desde 1849, incluída a actual república de merceeiro segundo uns, ou "de opereta" segundo outros.

Deixo à criatividade dos leitores e comentadores a actualização para a realidade portuguesa de inícios do séc. XXI das suas propostas de desobediência civil e da experiência dos corajosos seguidores que entretanto foi tendo por todo o mundo. Recusar pagar os impostos até o governo garantir que não servirão para fazer abortos arbitrários, resistir e desobedecer a leis que atentem contra a consciência individual, reclamar contra todos os pagamentos especiais por conta, não pagar multas voluntariamente, não responder a quaisquer inquéritos estatísticos "obrigatórios" ou não, não dar seguimento a qualquer correspondência oficial não-registada, ignorar a existência do Estado por todas as formas que se ofereçam, colaborar activamente com movimentos tendentes a fazer evoluir o regime português para uma democracia pluralista e não-partidocrática - aguardamos expectantes o sinal que os cibernautas portugueses darão do seu empenhamento ou da sua indiferença pela causa cívica das suas vidas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Há anos um amigo, desesperando deste regime, devolveu o cartão de eleitor ao presidente da assembleia da república. Este, na altura o Dr. Almeida Santos, escreveu-lhe de volta pedindo-lhe que reconsiderasse, e confessando-lhe que ele próprio sentira já por diversas vezes vontade de fazer o mesmo...
Talvez esta fosse uma forma eficaz (e mediática) de protesto contra o estado da democracia. Se duma vez entregassem o cartão uns cem ou duzentos eleitores... isso teria muito mais impacto do que 1% ou 2% de votos brancos numas eleições. Porque significaria um corte definitivo! Quem estiver disposto a isso que o comunique por mail para o autor deste blogue e ao chegar a um número X, logo se pensará num modo de consumar publicamente o acto.

Z.P.